segunda-feira, 26 de maio de 2008

Chuvarada

Hoje choveu forte durante todo o dia em Copenhague. Foi a primeira chuva em várias semanas de dias ensolarados, pouco comuns na primavera dinamarquesa.

Os dias ensolarados são os responsáveis pela menor freqüência com que tenho escrevido. É que quando o sol sai, ninguém fica dentro. A dinamaquesada inteira vai para os jardins, parques, praias, cafés nas calçadas e onde mais se possa conseguir um lugarzinho ao sol. Eu, claro, não deixo por menos. Passo todas as horas que posso no jardim ou estou sempre arranjando um programinha ao ar livre.

O quase desespero pela luz trazida pela primavera não é para menos. Pelos padrões brasileiros, há, pelo menos, seis meses de inverno na Dinamarca. De outubro a abril, as temperaturas são semelhantes ou bem mais baixas dos que as do inverno do sul-sudeste brasileiro.

A primavera começa oficialmente no final de março, mas é só em maio que o sol começa realmente a dar o ar da graça e as temperaturas são mais amenas. Exércitos de dinamarqueses desesperados pelo sol saem às ruas como formigas saem do formigueiro depois de uma chuvarada. O pouco cuidado com que os dinamarqueses brancos de natureza e pálidos de inverno se expõem ao sol mostra porque o câncer de pele é o tipo de câncer mais comum na Dinamarca. Meu hábito de usar protetor solar e chapéu nas horas de sol mais intenso chega a ser visto com curiosidade por alguns dinamarqueses, que não entendem porque uma pessoa morena como eu precise se proteger dos raios ultra-violeta.

terça-feira, 20 de maio de 2008

O bichinho pegou

Me senti relativamente bem depois da terceira sessão de quimioterapia e antes de ontem, domingo, cheguei a participar de um mutirão de pais na creche da Gabriela. Demos uma geral na creche: alguns pintaram, outros capinaram, outros costuraram. Depois almoçamos todos juntos um feijão à mexicana preparado por um dois pais.

Mas ontem o bichinho pegou. Ao cansaço que tem me acompanhado em maior ou menor grau desde o começo da quimioterapia, se juntou dor de cabeça, calafrios e dores por todo o corpo, principalmente na nuca, ombros e costas. Parecia que estava no começo de uma super gripe, daquelas que derrubam elefante e em que a gente pede para o mundo se acabar numa cama.

O pior não era o mal estar físico, mas uma tristeza que me atacou profunda e subitamente. Depois de uma boa choradeira, me senti melhor, mas o mal estar continuou, embora hoje as dores musculares tenham ficado mais fracas.

O motivo de tanto mal estar foi um medicamento que tomei um dia depois da quimioterapia com o objetivo de estimular meu organismo a produzir mais neutrófilos e assim me proteger de infecções. Na lista de efeitos colaterais provocados pelo tal medicamento estão dores musculares e dor de cabeça.

Se tudo correr como planejado, e vai, passarei por seis sessões de quimioterapia. Estava previsto que eu receberia esse medicamento para produção dos neutrófilos somente depois de cada uma das últimas três sessões de quimioterapia. Como meus neutrófilos resolveram sumir já depois da segunda sessão, os médicos decidiram que eu já deveria começar a receber o tal medicamento uma sessão antes do previsto.

Agora já não dá para dizer que não sei o que me aguarda nas últimas três sessões de quimioterapia.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Glóbulos desbotados


A semana que passou foi povoada por duas pequenas frustrações. O tratamento que eu receberia na terça-feira passada teve de ser adiado para a sexta-feira porque o nível de um tipo de glóbulos brancos do meu sangue estava muito baixo. Um exame de sangue confirmou que o índice que mede a concentração dessas células, que aqui chamam “neutrocytes”, era de apenas 1,1, enquanto o aceitável seria 1,5. Se não me engano, essas células se chamam neutrófilos em português.

Um adiamento de apenas quatro dias pode parecer insignificante, mas quando toda sua vida se organiza em torno de um tratamento que vai determinar como você vai se sentir nas próximas semanas, a coisa muda de figura. Uma amiga que tinha tirado folga para ficar comigo durante e nas horas depois da quimioterapia, perdeu o dia de trabalho inutilmente. Uma outra amiga veio de Madrid para me ficar comigo e a Gabi enquanto o Henrik viajava a trabalho. Claro que foi ótimo revê-la, mas ela talvez tivesse escolhido um outro dia para me visitar se soubesse que eu não receberia o tratamento na data prevista.

Além disso, todo atraso no meu tratamento significa que voltar a ter uma vida mais próxima do normal fica mais distante.

Na sexta, um terceiro exame de sangue em uma semana mostrou que os glóbulos brancos do meu sangue finalmente haviam chegado ao nível adequado. O índice que mede a concentração de neutrófilos do meu sangue já tinham subido para 1,7. No mesmo dia passei pela terceira dose de quimioterapia, o que foi um alívio.

O outro pequeno desapontamento da semana foi meu joelho direito. Na terça, depois dos meu recorde de 26 minutos, meu joelho passou a doer. Achei que no dia seguinte estaria em forma novamente mas, quase uma semana depois, continuo sentindo que ainda não dá para correr. Sou obrigada a esperar meu joelho se recuperar para quebrar novos recordes.

terça-feira, 13 de maio de 2008

26 minutos

Hoje de manhã voltei a correr e bati meu próprio recorde: 26 minutos. Mas meu joelho doendo está me dizendo que talvez eu tenha exagerado um pouquinho. Bem, vou ser mesmo quase obrigada a fazer uma pausa nos próximos dois dias por causa do cansaço e mal estar causados pela quimioterapia.

Daqui a pouco uma amiga vem me buscar para irmos ao hospital onde deverei passar por mais uma sessão de quimioterapia no começo da tarde. Nada a fazer a não ser respirar fundo.

A cruzada de Pia

Um tempo atrás, um dos maiores jornais da Dinamarca anunciou o lançamento de um livro que conta a história das 10 pessoas mais influentes do país. Na lista, apenas uma mulher. O fato da lista só ter uma mulher seria suficiente para me incomodar já que se poderia esperar um pouco mais de um país conhecido por ser um dos mais avançados no reconhecimeto dos direitos das mulheres.

Mas a tal lista me grilou ainda mais porque a única mulher incluída, Pia Kjærsgaard, é uma das políticas mais conservadoras e, talvez como consequência do seu conservadorismo, mais populares da Dinamarca. Famosa por defender políticas anti-imigração e anti-imigrantes, ela lidera o Partido do Povo Dinamarquês (Dansk Folkeparti).

Criado em junho de 1996, o DF (sigla em dinamarquês) tem uma trajetória espetacular. Já nas eleições de 1996 conseguiu 7,4% dos votos e no ano passado recebeu 13,8 % dos votos – suficientes para que o partido aumentasse para 25 o número de vagas no parlamento e mantivesse seu posto de terceiro maior partido do país.

De fato, não é de estranhar que Pia fizesse parte da tal lista. Ela é realmente uma das pessoas mais influentes do país. Para não desagradar seus próprios eleitores, o partido no poder, o Venstre (embora o nome signifique esquerda, o partido é de centro-direita), não ofereceu cargos ao DF. Mas isso não diminuiu o poder do partido de Pia, do qual o governo depende para conseguir maioria no parlamento.

Pia Kjærsgaard não gosta de ser chamada de racista. Aliás, já andou processando pessoas que a classificaram como tal. O problema é que abundam exemplos de que ela e seu partido são o que não gostam de ser chamados. Um dos mais notórios foi a impressão de um cartaz da ala jovem do DF contra o crescimento da população imigrante. O cartaz comparava a Dinamarca de hoje, mostrando jovens brancos sorrindo com ar saudável e feliz, com a Dinamarca daqui a dez anos, mostrando moças com o rosto coberto, à maneira islâmica, e rapazes, aparentemente de origem árabe, em atitude desafiadora, como se estivessem prontos para uma ação terrorista.

Ela combate, como já declarou, uma Dinamarca multiétnica e multicultural porque – muito simples – a Dinamarca é para os dinamarqueses. Faz uso de generalizações grosseiras ao dizer que os refugiados que chegam ao país têm desprezo por tudo que é dinamarquês, ocidental e cristão e estão mergulhados em cultura medieval.

Para desempenhar o papel de protetora da Dinamarca branca e cristã, Pia se veste literalmente a caráter. Não com armadura e lança, como os guerreiros medievais, mas freqüentemente com terninhos cor-de-rosa que são de matar.

Infelizmente para ela e para os pouco mais de cinco milhões de pessoas que conseguem entender dinamarquês, a voz dela é uma lástima: esganiçada e fanhosa – um misto de Roberto Carlos com Dercy Gonçalves. Mas ela não se intimida: adota um tom doce e suave e parte para o ataque, sempre dando a impressão de que não está atacando ninguém, mas apenas defendendo sua virtuosa e imaculada Dinamarca.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Socos

Essa história de enfrentar a realidade nem sempre é o meu forte. Quando soube que aquele caroço no meu seio esquerdo era maligno, tentei de todas as maneiras dizer a mim mesma que não devia ser tão mal assim, que era só um carocinho de nada que uma cirugia simples resolveria.

Receber uma notícias dessas numa outra língua ajuda a fugir dos socos de realidade. Antes de eu saber o que tinha, ao perguntar à médica que fazia uma ultrassonografia dos meios seios o que ela tinha encontrado, a resposta, em dinamarquês, foi clara: “Esse caroço é maligno”. Fiquei especulando se a palavra "maligno" em dinamarquês tem o significado horrível que tem em português. Mas, embora não tivesse usado a palavra câncer, ela não deixou margem para dúvidas: eu teria de ser operada e a dimensão do problema seria conhecida depois do resultado de uma biópsia e outros exames.

Naquele dia eu havia ido sozinho ao hospital. Saí da sala onde foi feito o exame e entrei no primeiro banheiro que achei. Chorei sozinha, e muito.

Até então minha vida havia sido povoada por várias dúvidas e algumas poucas certezas. Naquele banheiro, quase tudo cedeu lugar a uma interrogação vital “vou sobreviver a essa doença?”. Essa incerteza imensa e sufocante veio junto com outra ainda mais terrível: “vou sobreviver para ver minha filha crescer?”.

Todos com quem converso sobre minha doença sempre tentam me encher de otimismo e confiança. “Hoje em dia os médicos têm controle sobre isso, ninguém morre mais de câncer de mama, a medicina avançou muito nessa área...” Ouço e concordo, mas aquele diabinho que vive espetando meu anjinho abana a cabeça e diz: “Blá, blá, blá. Num ano, mais de 1300 mulheres morrem de câncer de mama só na Dinamarca, um paisinho com cinco milhões de habitantes”.

Fujo das estatísticas e evito me fazer aquelas perguntas. Elas me acompanham, mas prefiro não encará-las. Elas me entristecem, como agora, e me sugam energia, ânimo e alegria. Tento substituí-las com uma certeza: não vai ser essa porcaria de doença que vai me matar. Ainda tenho muito coisa para fazer e a mais importante delas é ver minha filha crescer.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

21 minutos

Acho que hoje posso dizer que superei a segunda etapa do meu tratamento quimioterápico. Os piores efeitos colaterais da segunda rodada já passaram e me sinto quase como se não estivesse sob tratamento. Agora é curtir esta boa semana, antes de tudo recomeçar na semana que vem, quando terei uma nova sessão de quimioterapia.

Hoje corri por 21 minutos em volta do lago aqui perto de casa. Foi meu tempo recorde desde que comecei a correr depois da operação e me senti uma verdadeira campeã. Os dias ensolarados têm ajudado. Fica fácil se animar para sair de casa nesses dias de sol de brigadeiro e temperatura perto dos 20 oC. Só espero que se esse pique todo continue quando eu voltar a trabalhar e o inverno chegar. É possível que sim. Afinal, agora tenho uma motivação adicional para continuar me movimentando: há estudos que indicam que mesmo atividade física moderada pode aumentar a expectativa de vida de quem tem ou teve câncer de mama.