quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sete de setembro

Brazilian flag in BRASÍLIA, Brazil (6)
Image by JorgeBrazil via Flickr
Acho que a primeira vez que me senti como brasileira deve ter sido pouco tempo depois de 1970 e a razão não foi a terceira conquista da Copa do Mundo pelo Brasil naquele ano. Me lembro quando meus pais levaram a minha irmã e eu da cidade satélite de Taguatinga, onde morávamos, ao Plano Piloto da capital do Brasil para assistir à parada militar. Era 7 de setembro, data nacional do Brasil, quando nas escolas as crianças ouviam que deveriam prestar homenagem à grandeza do país que eu mesma estava começando a amar.

Há duas imagens do meu primeiro desfile militar que ficaram na minha memória: as bandeiras e um rosto. O governo distribuía milhares de bandeirinhas do Brasil para o público do desfile. Como toda criança, eu adorava sair andando com uma ou várias daquelas bandeirinhas verdes e amarelas e sempre tentava ganhar o maior número possível delas.

O rosto era o do presidente brasileiro na época – o general Emílio Garrastazu Médici. Não sei se eu realmente me lembro disso ou se eu criei na minha mente a impressão de que eu vi nitidamente o rosto do general naquele 7 de setembro. Se eu tivesse perguntado ao meu pai, ele provavelmente teria dito que aquela imagem só existia na minha imaginação, já que o público não tinha autorização para chegar perto do presidente. Resultado ou não da minha imaginação, a face do presidente Médici ficou na minha memória associada ao 7 de setembro, uma ligação que de certa forma viria a destruir o meu prazer de celebrar o Dia da Independência do Brasil.

Como criança, eu via o rosto do presidente Médici como a de um homem sério e merecedor de respeito que me inspirava confiança e sensação de segurança. Quando seu mandato terminou, em 1974, eu quase me senti triste porque o novo presidente, o também general Ernesto Geisel, parecia sempre tão severo, rígido e com um ar ressentido.

Mas alguns anos mais tarde eu descobriria que naquele 7 de setembro, enquanto minha família e eu estávamos ali acenando para o presidente ao levantar nossas bandeirinhas sob o céu sem nuvens de Brasília, havia outros brasileiros que não tinham nada o que celebrar. A presidência de Emílio Garrastazu Médici correspondeu ao período mais repressivo da ditadura militar que dominou o Brasil de 1964 a 1985. Seu governo (1970-1974) foi responsável pela tortura de milhares de pessoas, pelo desaparecimento e assassinato de militantes de esquerda, pela censura da imprensa e pela revogação dos direitos políticos dos que ousavam contestar o regime militar. Estima-se que mais de 10 mil brasileiros foram obrigados a deixar o país e procurar exílio para fugir da repressão.

Quando, na minha adolescência, comecei a descobrir o que meu país havia passado durante o governo Médici, eu me senti ludibriada e com raiva. Eu não consegui aceitar que alguém que tinha a missão de proteger os cidadãos de seu país, na verdade estava dando ordens ou, no mínimo, permitindo que esses cidadãos fossem perseguidos, torturados e até mesmo assassinados.

Somente pouco tempo atrás, depois de trabalhar alguns anos no Conselho Internacional para Reabilitação de Vítimas de Tortura (International Rehabilitation Council for Torture Victims - IRCT), eu comecei a me perguntar se aquela desapontamento de criança teria tido alguma coisa a ver com as minhas escolhas profissionais. Talvez eu tivesse de qualquer maneira escolhido trabalhar para uma organização de direitos humanos mas eu acredito que aquele mito infantil desfeito de alguma maneira me direcionou a sempre tentar trabalhar para que mentiras, tortura e repressão nunca mais desonrem o país onde nasci e que eu amo.

PS: A versão original deste publicada em inglês no site do IRCT.
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