quarta-feira, 30 de abril de 2008

Primavera 2008

A ameixeira do vizinhoA primavera chegou para valer aqui na Dinamarca. Os jardins são uma profusão de cores que quase conseguem apagar da memória os dias cinzentos e desfocados do inverno. A temperatura chegou a incríveis 20 graus durante o dia na última semana, o que nos fez ir atrás de sapatos e sandálias menos quentes para a Gabi.

Mas a alegria com a chegada da primavera sempre me prega peças. Olho aquele solão lá fora e não tenho dúvida: pego o casaco mais leve do armário, monto animadinha a bicicleta e cinco minutos depois, tiritando, estou me xingando porque não vesti uma roupa mais quente. É que as manhãs e finais de tarde ainda estão bem frios. No inverno é mais difícil se enganar. Faz frio o tempo todo e não há dúvida sobre o que devo vestir: blusa, cardigan, meias-calça, calças compridas, botas, luvas, cachecol, chapéu ou touca. Em resumo: pareço uma cebola, cheia de camadas, como observou uma conhecida.

As temperaturas mais amenas também são uma alívio para minha careca. Nossa, como sinto frio na careca, especialmente na nuca. Mesmo dentro de casa e até na hora de dormir estou sempre usando uma das tocas que comprei para os meus meses de carequice.

Uma pedagoga da creche da Gabriela perdeu todo o cabelo do corpo cinco anos atrás por causa de uma doença incurável. Um dia desses conversei um pouco com ela sobre o que é viver sem cabelo. Ela me contou do frio que sente com uma simples brisa que passa por seu braço liso. Falou também o quanto foi difícil encarar o olhar das pessoas logo depois de ter perdido o cabelo e como sempre se recusou a usar peruca. Admirei a coragem dela e me senti grata por saber que meu cabelo logo vai ter permissão para voltar a crescer.

domingo, 27 de abril de 2008

Fugindo da raia

Ontem o Henrik e eu fomos à festa de aniversário de trinta anos da prima dele. Na Dinamarca, quando falam em festa, geralmente querem dizer um jantar que dura horas, onde você fica sentado ao lado ou em frente a pessoas que você nunca viu e pelas quais você não se interessa ou que não se interessam por você. Depois de uma refeição interrompida por discursos, canções e brincadeiras nem sempre tão divertidas, às vezes rola uma dançazinha animada por um organista ou um conjuntinho musical que deixam muito a desejar.

Felizmente, a festa de ontem não seria do tipo tradicional. Foi anunciada como uma festa onde rolaria muita música e nada de jantar, apenas bebidas e tira-gostos. Oba, diria uma brasileira saudosa de uma festa daquelas. Mas aí vale outro esclarecimento. Na Dinamarca, quando anunciam uma festa como essa, entenda-se bebedeira coletiva. Claro que há exceções, mas de modo geral o que acontece é que o povo se reúne para beber tresloucadamente e, dançar que é bom, fica para segundo plano.

Mas decidimos ir assim mesmo e tudo ia bem até estacionarmos o carro ao lado da casa da aniversariante. A idéia de encarar uma casa cheia de gente estranha e festiva de repente me apavorou. Me acovardei diante da perspectiva das pessoas me olharem tentando adivinhar o que eu, com aquele pano na cabeça, seria: extravagante, religiosa ou doente? Tentei controlar as lágrimas, inclusive para evitar borrar o rímel caríssimo que havia comprado no dia anterior, mas foi inútil. Os gases inchando minha barriga, o cansaço e um incômodo na área da cirurgia não ajudavam em nada a levanter meu ânimo.

Depois de mais uns minutos no carro, outros convidados da festa passando por nós, o Henrik deu a partida e fomos a um café, onde bebemos um chá e me acalmei. Por ele, poderíamos voltar para casa. Insisti que deveríamos voltar e encarar a turba. Afinal, tínhamos comprado presente, argumentei com meu raciocínio de quem não admite desperdícios.

Fomos. As pessoas podem até ter ficado na dúvida sobre se eu era extravagante, religiosa ou doente, mas foram suficientemente discretas para me tratar como se não estivessem notando o pano na cabeça.

A festa foi aquilo mesmo que eu previa, uma bebedeira coletiva. Mas, à margem dela, lá pelas tantas me vi discutindo com um casal de pedagogos e o Henrik evolução natural e o aparente descompasso entre o desenvolvimento físico e mental dos seres humanos. E olha que eu não tinha bebido nenhuma gota de álcool.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Peruca

Três dias depois do meu primeiro tratamento quimioterápico, fui a uma perucaria e falei à vendodora que precisava de uma peruca. A senhora me olhou e disse: “Ah, meu Deus, onde é que vou arranjar uma peruca para substituir esse cabelo todo?” E continuou: “Você tem o tipo de cabelo que sempre sonhei ter: cheio, encaracolado”. Eu ficaria envaidecida se já não tivesse ouvido isso inúmeras vezes aqui na Dinamarca, onde os cabelos escuros e cacheados fazem sucesso, ao contrário do Brasil superpovoado de falsos louros alisados.

Agradeci os elogios da vendedora, aliás muito gentil e simpática, e lhe pedi que tentasse alguma peruca curta e escura. Ela veio com algumas e minha mãe e meu marido, que foram comigo à loja, concordaram que uma delas tinha ficado até legal. Embora o resultado tenha ficado melhor do que eu esperava, ainda me achei ridícula com aquela coisa.

Mas como a coisa seria paga pelo hospital onde estou sendo tratada, decidi levá-la. Afinal não sabia como me sentiria depois de perder o cabelo e, quem sabe, até me animaria a usar a coisa.

Hoje, seis dias depois de raspar a cabeça, ainda não me animei a usar aquela coisa. A Gabriela também não gostou. Olhou e disse: “Feio, mãe, feio”. Apesar da opinião desfavorável, de manhã, antes de ir para creche, quando lhe sugeri que usasse a peruca, ela não se avexou. Enfiou-a na cabeça e se divertiu a valer, o que, claro, não perdi a chance de registrar.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Tô um bagaço mas tô bem


Hoje às 11 da manhã recebi a segunda dose to tratamento quimioterápico. Estou um bagaço mas estou bem. Dá para entender? Quando, depois de uma sessão de quimioterapia, você só se sente um bagaço de tão cansada é porque a coisa vai bem. A barriga parece que vai estourar com gases, tenho um pouco de enjôo e bebo água mineral com gás o tempo todo, mas perto daquilo que ouvi falar que outras pessoas sofrem, isso não é nada.

A outra boa notícia do dia é que conversamos com uma médica do hospital (Rigshospitalet) onde estou sendo tratada e ela disse que na maior parte dos casos, a quimioterapia é suficiente para eliminar células cancerosas que ainda tenha ficado em gânglios linfáticos.

Depois da operação, achamos que todos os gânglios linfáticos cancerosos tivessem sido retirados, mas um exame ainda em fase experimental feito quatro dias antes da cirurgia mostrou que havia um quarto gânglio contaminado abaixo da clavícula. A médica que cuida do meu caso explicou que aquele gânglio não poderia ter sido retirado com uma operação porque fica muito perto de uma artéria vital. Mas ficaram muitas dúvidas da conversa que tive por telefone com ela e hoje falamos uma a supervisora dela, que pareceu saber do que estava falando.

A terceira notícia boa do dia é que hoje voltei a correr em volta do lago Utterslev, aqui perto de casa, antes de ir ao hospital. Corri só 20 minutos, mas me senti o máximo. Aliás, o dia estava lindo.

domingo, 20 de abril de 2008

Careca

Estou careca. Tentei me agarrar até o último fio de cabelo mas não deu. Meu cabelo passou a cair demais desde ontem, o que estava me incomodando demais. Era cabelo para todo o lugar. Era só passar a mão que saía um monte. O cabelo caído nas minhas costas coçava horrores e começou a ficar constrangedor tanto cabelo caído nos meus ombros.

Hoje à noitinha o Henrik e a Gabriela me ajudaram a acabar com o que restava da minha cabeleira. Sentei com a cabeça inclinada sobre uma bacia grande de plástico enquanto o Henrik, a Gabi e eu íamos puxando o cabelo que saía aos montes. Quando o Henrik passou o barbeador para remover os fios que restavam, a Gabi se preocupou comigo e choramingou “Nej, é dodói.” Eu ri alto, falei que não doía e ela se acalmou. Depois perdeu o interesse pela brincadeira de deixar a mamãe careca e pediu para ver um DVD do Cocoricó.

sábado, 19 de abril de 2008

Cabelo

Não sei se ”o mais difícil até agora” escrito na última remessa é mesmo pra valer. Essa história de perder cabelo não está sendo nem um pouco engraçada. Começou na segunda, dia 14. O couro cabeludo coçava bastante, puxei o cabelo do alto da cabeça e saíram mais fios do que o normal. Fui ao banheiro logo de manhã cedo e notei que havia uns fios na calcinha. Até achei engraçado: parecia depilação sem cera e sem dor. Era só puxar que a marca do biquini ia se formando. Pena que de lá para cá quase não caíram mais cabelos do púbis.

No dia seguinte comecei a parar de achar graça quando os fios da cabeça, principalmente da parte de trás, passaram a cair em maior quantidade.

Na quinta fui à fisioterapia, que faço com outras mulheres que também sofreram masectomia, e fiquei vendo “eu amanhã” numa delas. Ela começou o tratamento quimioterápico uma semana antes de mim e decidiu raspar a cabeça depois de aparecerem clarões no couro cabeludo.

Ontem e hoje, sábado, a queda aumentou consideravelmente. Antes eu puxava e vinham 10 a 20 fios. Agora vêm 30, 40. Tem cabelo meu para todo lugar. Claro que o mais sensato seria raspar tudo, mas ainda não criei coragem. Me agarro até o ultimo fio de cabelo. Ou melhor, até o primeiro clarão. O que deve acontecer amanhã ou depois.

Até essa semana não imaginava o quanto o meu cabelo era importante para mim. Ontem fiquei bastante triste e chorei um pouco por causa da futura carequice e de tudo que ela representa. Hoje amanheci mais animadinha. Acho que me fez bem chorar um pouco. Fazia dias que eu bancava a durona.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Bandagem

O pior, até agora, foi quando tiraram a bandagem que cobria o ferimento deixado pela operação para retirada do meu seio esquerdo. Até então o corte de quase vinte centímetros estava coberto por gaze e embora fosse evidente que ali näo havia mais um seio, era como se o curativo me protegesse de encarar meu corpo mutilado.

O curativo foi retirado dois dias depois da operação e, graças aos deuses, ninguém ocupava a cama ao lado da minha e o Henrik tinha vindo me visitar depois de ter levado a Gabi para a creche. Foi simplesmente horrível. Olhar para o que não havia mais, um peito metade vazio, riscado por um corte enorme, mais parecendo o de uma menina de oito anos. Do outro lado o seio direito, pateticamente solitário.

Esteticamente talvez tivesse ficado melhor se os dois seios fossem retirados. Mas isso teria significado que a doença tinha se espalhado mais do que os 1,9 cm de caroço, mais algumas células em estado pré-cancerígeno por perto e mais três nódulos linfáticos contaminados.

Me senti desconsolada, muito triste e chorei forte e alto como ainda não tinha chorado desde o início desse pesadelo. Usar a palavra pesadelo é cliché, mas é difícil encontrar uma outra melhor. Nos primeiros dias acordava de manhã meio esquecida de tudo que havia acontecido e do que ainda estava por acontecer: eu sofria de cancer de mama, tinham me retirado um seio, eu era uma aleijada e ainda teria que passar por meses de um tratamento cujos efeitos colaterais mais parecem uma segunda doença sem ter certeza de que no final de tudo isso eu sobreviria a essa doença maldita.

Razões para otimismo há, sem dúvida, mas naquele momento nada era capaz de amenizar a dor, o desespero, o desamparo. Me senti tão feia. Horrorosa. Dona de um corpo que pode assustar crianças e chocar adultos.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Imunidade

Até dezembro do ano passado, era como se minha família estivesse protegida por uma aura que a protegia das doenças e mazelas da vida. Embora eu soubesse que meu pai estivesse com sérios problemas pulmonares e já tivesse comentado com Henrik, meu marido, que mais cedo ou mais tarde ele poderia nos dar uma supresa desagradável, no fundo no fundo eu ainda achava que nada de verdadeiramente ruim nos atingiria.

Aí, na manhã de uma sexta-feira, 21 de dezembro, receber a notícia de que meu pai havia sido internado depois de duas paradas respiratórias e uma parade cardíaca não foi só um choque. Foi também a implosão de uma crença que me acompanhava desde criança: a de que minha família era inatingível, infalível.

Semanas depois da morte do meu pai, quando soube que minha sobrinha passava por uma outra crise da síndrome nefrótica que a acompanha há anos, me apavorei. A crise foi controlada, mas o pânico não sumiu. Acho que foi mesmo um pressentimento de que algo muito errado estava por acontecer.