quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Grupo da mama

Participei de um grupo de mulheres organizado por um centro mantido pela prefeitura de Copenhague para dar assistência a pacientes de câncer. O grupo, que começou com sete mulheres e terminou com cinco, todas recebendo tratamento contra câncer de mama, se reuniu uma vez por semana durante quase dois meses mês e o tema dos encontros era um só: a vida com câncer.

Aceitei participar do grupo porque achei que seria uma boa alternativa a procurar um psicólogo. Foi uma decisão acertada. Foi bom conversar com outras pessoas na mesma situação, sofrendo dificuldades muito parecidas com as que tenho enfrentado. Foi também uma forma de aliviar o lado do marido – coitado – que, embora nunca reclame, deve estar se cansando da ladainha de uma paciente de câncer, que todo dia tem algo do que reclamar.

O que ouvi das participantes do grupo é confidencial, naturalmente, mas posso dizer que todas nós compartilhamos quase as mesmas angústias, temores e preocupações.

No último encontro me senti esvaziada. Usei bem a oportunidade para falar quase tudo o que queria e quando as reuniões acabaram acho que não tinha mais nada a falar, pelo menos não àquele grupo. Foi uma sensação curiosa e boa.

domingo, 23 de novembro de 2008

Amizades dinamarquesas

Eu deveria escrever mais sobre a Dinamarca. Afinal, minha filha e meu marido são dinamarqueses, é aqui que vivo e, querendo ou não, acho que vai ser aqui que vou passar mais algum bom tempo da minha vida. Mas a Dinamarca não é muito inspiradora, e muitas das coisas que eu gostaria de escrever sobre os dinamarqueses poderiam soar amargas demais.

Às vezes tenho a impressão que vivo à margem da sociedade dinamarquesa. É claro que tenho amigos nativos daqui, mas a imensa maioria dos dinamarqueses com quem me relaciono são amigos ou parentes do meu marido ou casados com brasileiros vivendo aqui. Depois de mais de 11 anos vivendo aqui, posso dizer que tenho apenas uma, talvez duas amizades que eu mesma fiz.

O problema pode estar em mim que não me dou ao trabalho de fazer novas amizades. Mas meus amigos brasileiros e estrangeiros aqui falam da mesma dificuldade. Além disso, as muitas nacionalidades dos meus amigos me leva a acreditar que o problema está na sociedade dinamarquesa que é, sem dúvida, muito fechada.

Uma das minhas teorias para a aparente impenetrabilidade da sociedade dinamarquesa é que os dinamarqueses simplesmente não têm tempo para novas amizades. As pessoas aqui cultivam amizades que muitas vezes começam na creche, continuam no jardim de infância e na escola e duram até a universidade.

O grupo mais íntimo de amizades de uma das minhas cunhadas dinamarquesas é feito principalmente de moças que ela conheceu no tempo da escola primária. Aqui é comum, e não uma raridade, encontrar casais que se conheceram no jardim de infância, começaram a namorar no segundo grau, passaram a morar juntos quando entraram na universidade e se casaram quando apareceu ou decidiram ter o primeiro filho. A longevidade das amizades aqui faz com que as pessoas criem círculos de amizade fechados não só aos estrangeiros mas também a outros dinamarqueses.

Os membros desses círculos se acompanham ao longo dos anos em vários projetos comuns. Há dinamarquesas que engravidam na mesma época que suas amigas mais próximas para poderem curtir juntas a licença maternidade. Outra vantagem de tal acordo é queas crianças motivo das licenças se tornam amigos dos filhos da amiga. Ou seja, os nenês já nascem com amiguinhos arranjados.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Sossego

Um dia desses me peguei quase alegre porque no dia seguinte teria de passar três horas no hospital para receber nova injeção de Herceptin. “Tá maluca, Margareth?”, peguntei a mim mesma. Não faz sentido se alegrar por ter de voltar a um hospital que começo a conhecer até melhor do que as palma da minha mão.

Demorou uns dois dias para eu entender minha quase alegria. Não há nada de agradável em ser picada para receber uma injeção, mas essas visitas a cada três semanas estão se tornando um pequeno refúgio para mim.

Chego lá, me levam para um quarto onde me sento numa poltrona confortável, me aplicam o medicamento, que leva uns quarenta e cinco minutos para ser completamente injetado, e depois fico mais uma hora e meia em observação para o caso de eu sofrer alguma reação alérgica.

Essas quase três horas se tornaram uma oportunidade, agora cada vez mais rara, para uma pausa. Nelas posso ler uma revista feminina boba, rascunhar idéias para o blog, planejar a vida nos próximos dias ou, maravilha das maravilhas, tirar uma boa soneca. Tudo isso sem aquela angústia de pensar que talvez meu tempo pudesse estar sendo usado melhor fazendo alguma outra coisa. Lá não tenho escolha a não ser me submeter obedientemente às prescrições e recomendações feitas pelos médicos e enfermeiras (e aqui escrevo enfermeiras porque aqui no país da igualdade entre os sexos ainda não encontrei um único enfermeiro).

Nada de tomar decisões, nada de tomar providência: as decisões e as providências já foram tomadas para mim. Em suma, três horas de sossego.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Mimo

Estou chegando perto dos 45 e sentindo uma vontade menina de ser mimada. Sabe aquilo de ter alguém te levando um copo de leite na cama? Ou de perguntar o que você quer para jantar, estando preparado para rodar a cidade inteira para encontrar aquele ingrediente imprescindível para a receita daquele prato que você escolheu?

Acho que essa carência é em parte resultado dos últimos meses de tratamento contra o câncer, quando tive de deixar escondida num canto qualquer a tristeza causada pela morte do meu pai. Colocar um pouco de lado a falta que ele faz foi uma estratégia inconsciente para evitar um desmoronamento emocional.

Mas agora que está chegando o primeiro aniversário da morte dele, lembranças da nossa convivência estão ocupando mais e mais a minha cabeça. Algo de que sempre me lembro é o indefectível copo de leite quente antes de dormir. Lá pelos meus sete anos de idade, sempre que ele estava em casa na hora de ir para a cama, minha irmã tinha direito a um copo com leite quente e eu, que nunca gostei de leite puro, ganhava um copo com leite com açúcar manchado de café. Talvez não fosse o hábito mais saudável do mundo, mas era um dos meus rituais favoritos na infância.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Banalidades

Passar por um tratamento contra câncer traz preocupações vitais e banais. A vital mais importante é sem dúvida a relacionada à sobrevivência. Vou ou não sobreviver a essa doença? No meio angústias lúgubres, vêm várias outras preocupaçõezinhas banais que, para o bem ou para o mal, ajudam a afastar o pensamento das dúvidas mais dolorosas.

Enquanto eu estava careca, me preocupava a falta de cabelo. Agora que o cabelo está voltando a crescer, surgiu uma preocupação capilar extremamente séria. Será que vou ficar com cabelo liso? Não gosto muito da idéia mas várias pessoas me avisaram que depois de um tratamento quimioterápico, o cabelo pode voltar com aparência diferente e, pelo menos por enquanto, meu cabelo está crescendo bem liso, parecendo saído de uma bela escova.

Ao contrário da maioria das minhas contemporâneas, sou feliz com meu cabelo encaracolado. Somente na adolescência, e mesmo assim raramente, tentei fazer algo para deixar meu cabelo mais liso. Nunca nem cheguei a cogitar um alisamento e o máximo que me permiti foi uma ou outra escova.

Mas faz muitos anos que assumi com alegria e alívio meu cabelo cacheado, encaracolado, enrolado. Alegria porque acho que cabelo liso não combina nadinha comigo. Fico parecendo a Maga Patológica. Alívio porque acho que tudo isso de escova, alisamento etc e tal é uma completa perda de tempo. Tenho formas melhores de usar meu tempo.

Tenho amigas e até uma irmã que fazem escova no cabelo todo santo dia. Dá vontade de dizer: libertem-se! Assumam seus cachos e tudo o mais que eles representam.

Seria uma declaracão meio banal, mas ainda assim acho que valeria a pena.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

De pai para filha para neta

Um dia desses minha filha, depois de já deitada, me pediu para lhe levar água. O pai, acho que para me poupar, se antecipou e atendeu ao pedido dela levando-lhe água num copo comum. Ela reclamou. Queria beber água num copinho pequeno, que ela acha lindo, normalmente usado para servir aguardente dinamarquesa. O pai bateu o pé e disse que não, o que provocou uma choradeira.

Achei uma pena. No dia seguinte ela pediu novamente água no copinho. Dessa vez me adiantei ao pai e fui servir-lhe água no copinho. Ela adorou, bebeu a água com alegria e depois caiu no sono, não sem antes, é claro, tentar puxar conversa.
Senti que meu pai aprovaria eu ter me rendido àquele pequeno capricho da neta. Numa situação semelhante, ele teria feito o mesmo: servido água no copinho. Afinal, ele foi o pai de pequenos e inesquécíveis mimos.

Um desses mimos era o de "fazer laranja com copinho". Para as crianças, toda laranja que ele descascava tinha de ter copinho, que ele fazia formando um pequeno cone no topo da laranja. Adorávamos laranja com copinho, que obviamente tinha muito mais sabor do que uma laranja sem graça descascada de maneira mais tradicional.

Até comer alface podia era divertido porque tínhamos direito a fazer trouxas de comida com as folhas de alface. Era só colocar o arroz e o feijão em cima da folha, puxar as bordas e pronto. Estava feita a trouxinha de comida. Uma delícia, nós achávamos.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Dias escuros

No domingo termina o horário de verão aqui na Dinamarca. Será hora de sairmos de irmos à caça de todos os relógios que guiam nossas vidas: os dois despertadores digitais na cabeceira da minha cama, o relógio do vídeo player (é, incrível não? Ainda tenho um video), o relógio do carro, o celular, o MP3, o telefone do trabalho, os telefones de casa etc

Só de pensar na mudança sinto arrepios. Nem tanto por causa da mudanca de horário, mas pelo que ela significa. Para mim, é o anúncio da chegada do inverno e da escuridão trazida por ele.

A partir da segunda, quando voltarmos do trabalho para casa, teremos necessariamente de usar lanternas nas bicicletas para evitar multas e não correr o risco de atropelamento por carros e caminhões.

É nessa época que mais acontecem acidentes fatais com ciclistas e pedestres aqui na Dinamarca. As pessoas ainda estão desacostumadas com a escuridão e, com a mudança do horário, a situação fica ainda mais grave. Nos meses mais escuros, dezembro e janeiro, o dia só fica mesmo claro depois das oito da manhã e às quatro e meia da tarde já está escurecendo.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Começando o dia

O despertador toca às 6:45 mas eu já estou acordada desde as seis e quinze. Um calor enervante me despertou meia hora antes do planejado. O mesmo calor me tirou o sono duas vezes na noite passada. Nada extraordinário. Ter meu sono perturbado por essas malditas ondas de calor já estão virando parte da rotina.

Fico enrolando na cama mais uns dez minutos e finalmente me levanto. Troco de roupa rapidamente, pego meu aparelhinho de MP3 e vou na direção do lago aqui perto de casa.

Embora a manhã esteja bem fria, deve fazer uns seis graus, o jogo de jogging é suficiente para enfrentar a temperatura baixa. Pelo menos para isso essas ondas de calor irritante servem.

Mas preciso me apressar. A onda de calor já está indo embora e para não congelar decido andar só um minuto, ao invés dos dois previstos no meu programa de treinamento, antes de correr mais 10 minutos, andar outros dois, correr mais nove e finalmente caminhar o resto do caminho para casa.

Enquanto corro procuro os gansos que cruzaram tantas vezes o meu caminho quando corri aqui no verão. Não vejo nenhum deles. Acho que todos, bem mais espertos do que eu, já se mandaram para umas quebradas mais quentes do que essas. Fico levemente aliviada. Os gansos que vivem às centenas nas margens do lago durante as estações mais quentes do ano não são muito simpáticos. Quase sempre, quando cruzo o caminho deles, me olham com aquele olhar agressivo e desafiador de ganso, levantam o rosto e gritam se preparando para o ataque. Também não tive o prazer de ver nenhum cisne, outra ave que vive por aqui. Apenas os patos continuam impávidos, resistindo ao frio.

Essas corridas três vezes por semana estão começando a fazer parte da minha rotina. É duro sair da cama e enfrentar o frio e às vezes a chuva, mas sempre vale a pena respirar o ar fresco e admirar as luzes do amanhecer outonal da Dinamarca.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Fruta do pé

Outubro: outono na Dinamarca, primavera em Brasília, era na minha infância tempo das primeiras chuvas e também de começar a abandonar os cremes hidratantes e a banha de cacau que protegia a pele da falta de umidade do ar que atinge o cerrado entre maio e setembro.

Era também o mês de começar a colher fruta do pé. Me lembro que uma vez fomos com meus pais a Planaltina, uma antiga cidade goiana incorporada pelo Distrito Federal quando a capital do país se mudou para o planalto central.

Não me lembro do motivo ou de quem fomos visitar, mas o que importava mesmo era andar pelos quintais vastos, com árvores frondosas e cheios de jaboticabeiras enormes. Alías, como a jaboticabeira é bela. Comíamos jaboticaba até enjoar. Para matar a saudade e sabendo que ficaríamos sem provar da fruta até a estação ano seguinte.

Em Copenhague, outono é época de maçã, pelos menos aqui em casa. É hora de sair juntando as maçãs que não páram de cair dos dois pés do quintal. Em setembro já dá para colher de um dos pés uma maçã deliciosa à qual até eu, que não sou lá grande fã da fruta, me rendo. A Gabriela é a maior fã e usuária da árvore: às vezes passa o dia rondando a macieira, sempre comendo uma maçã colhida do pé. A outra macieira, que aqui chamam Belle de Boscop, é uma árvore antiga que, segundo nosso vizinho, deve ter a idade da casa: mais ou menos 70 anos. É uma árvore grande, que todo ano fica carregada de frutas grandes e esverdeadas, meio ácidas, boas para tortas e bolos.

Nessa época, o vizinho da frente sempre enche baldes de maçãs do quintal dele e as oferece aos vizinhos colocando-as no passeio em frente à casa dele, uma oferta que muita gente ignora por conta da abundância de maçãs nos quintais do bairro. Eu prefiro levar caixas e caixas de maçãs para colegas de trabalho e amigos. Dá um pouco de trabalho, mas é sempre um sucesso.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Normalidade

Hoje, no meio da correria do dia, tive a sensação de que minha vida estava voltando ao normal. Mas aliás, o que é mesmo voltar à vida normal? Já ouvi e também já disse a mim mesma diversas vezes que agora, com o fim da quimio e da radioterapia, a vida poderá voltar a ser como antes.

Mas no fundo sei que isso é papo furado. Minha vida sofreu uma reviravolta e, com o perdão do clichê, nunca será como antes. Além de problemas físicos que talvez tenham vindo para ficar, há aquele medo que, parece, veio para me acompanhar por algum tempo. É o medo da vulnerabilidade, de que tudo volte a acontecer. É um medo que prefiro ignorar, mas que está ali, por perto, à espreita.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Dez coisas para fazer ao mesmo tempo agora

Voltar à normalidade está sendo mais difícil do eu imaginava. O desconforto físico e cansaço causados pela quimio e radioterapia diminuíram bastante. É verdade que ainda sinto um pouco de cansaço muscular, o inchaço no braço e as ondas de calor continuam, e a pele afetada pela radioterapia ainda está se recuperando mas, como dizem os dinamarqueses, esses são desconfortos do “departamento de coisinhas pequenas”.

O que ainda está pegando é um certo cansaço mental meio difícil de explicar. Se antes dez coisas para fazer ao memo tempo agora me deixavam agoniada, agora três coisas são suficientes para me deixarem com os nervos à flor da pele.

Eu tinha imaginado que talvez pudesse voltar a trabalhar normalmente em outubro, mas já avisei meu chefe que não vai dar. Continuarei trabalhando em tempo parcial, embora aumente gradualmente o número de horas no escritório.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Recruta

Assumi minha careca. Ou minha quase careca já que, segundo meu marido, não se trata mais de uma careca e sim de um visual recruta.

A reação de amigos e colegas de trabalho ao meu novo visual tem sido positiva às vezes divertida. Alguém disse “Adorei seu cabelo novo” ao que fui obrigada a corrigir “Minha falta de cabelo, você quer dizer”.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Desconforto

Estou me cansando de sentir dores, sejam elas grandes ou pequenas. Hoje fui ao hospital para receber a terceira dose de herceptin, o tratamento que deve ajudar a prevenir que o câncer volte. Assim que vi a jovem e aparentemente inexperiente enfermeira que deveria me fazer a aplicação intravenosa, tremi nas bases. Ai, pensei, vai doer.

Na verdade a espetada que ela me deu doeu só um pouco mais do que o normal e nem deveria ter sido motivo para pânico, mas acho que minha resistência à dor, que eu antes considerava boa, está diminuindo.

É que estou de saco cheio de sentir dor e desconforto físico. Depois da tormenta que foi a quimioterapia, nas últimas semanas tenho penado com a queimadura causada pela radioterapia. Bem que as enfermeiras haviam me avisado que o desconforto causado pela queimadura iria piorar nas duas semanas seguintes ao término da radioterapia. Elas estavam certíssimas.

Cebola

O outono chegou. Esta semana já houve manhã com menos de três graus.

Resisto enquanto posso e ainda não sucumbi aos cachecóis, luvas e botas. Todo ano retardo ao máximo a época de me transformar numa cebola, cheia de camadas e camadas de roupas, como definiu uma ex-colega de trabalho. Retardo o momento da metamorfose porque tenho a impressão de que a partir do momento em que me cobro de camadas, não consigo mais removê-las por sete meses, que é o tempo que o outono e inverno duram na Dinamarca.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Radioterapia... acabou

Passei hoje pela última sessão de radioterapia. Quando cheguei à clínica do hospital onde recebo o tratamento radioterápico, as enfermeiras me receberam com uma pequenina bandeira dinamarquesa para comemorar meu último dia no papel de churrasquinho.

Não é nada agradável me olhar no espelho e ver o que a radioterapia fez com minha pele. Uma mancha escura cobre toda a área tratada e a cicatriz da operação, que coça muito, está bastante avermelhada. Segundo as enfermeiras, nas próximas duas semanas poderei sentir coceira e ardência e só depois a pele começará finalmente a se recuperar. Banhos de mar e piscina estão proibidos para mim no próximo mês e só depois de um ano poderei tomar sol na região afetada.

Foram 24 sessões, uma por dia, de segunda a sexta-feira e, de modo geral, tudo correu muito bem, mas é um alívio que não terei mais de passar por tratamentos tão violentos. A violência da radioterapia não pode ser comparada com a da quimioterapia, que é muito mais devastadora, mas nas últimas duas semanas do tratamento vinha me sentindo como um espetinho mal passado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Treinamento

Hoje consegui subir dois lances de escada sem ter de me arrastar para superar os últimos degraus. Aleluia! É um sinal de que finalmente os efeitos colaterais da quimioterapia estão cedendo.

Já faz quase dois meses que passei pela última quimioterapia e ainda hoje sinto alguns efeitos colaterais. Acho que o pior deles ainda são as ondas de calor que sinto várias vezes por dia. Infelizmente esse efeito poderá continuar por muito tempo já que o tratamento anti-hormonal que estarei recebendo por cinco anos também provoca ondas de calor. Ao calor indesejado, soma-se que meu paladar ainda não voltou ao normal, minha força muscular continua a desejar e as pontas dos dedos permanecem um pouco dormentes.

Mas a cada dia que passa me sinto mais forte e menos cansada. Comecei a fazer meu próprio plano de treinamento físico que inclui um programa de corridas combinadas com caminhadas três vezes por semans. É um ótimo programa para quem está fora de forma como eu e consiste em começar com caminhadas intercaladas com corridas curtas onde o tempo caminhado vai dimimuindo e as corridas vão gradativamente aumentando. Depois de doze semanas estarei correndo os sonhados 30 minutos.

Achei esse programa num site dinamarquês e se você quiser usá-lo e não dominar a língua aí vai uma rápida tradução para as palavras da tabela que você vai encontrar naquele link:

- gang – caminhar
- løb – correr
- uge – week
- dag - dia

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Síndrome da Boa Menina Traída pela Sorte

A Síndrome da Boa Menina Traída pela Sorte (SBMTS) acomete ambos os sexos mas, principalmente, mulheres, independentemente da faixa etária, classe social, etnia, grupo cultural ou religioso.

As mulheres atingidas pela síndrome acham que sempre fizerem tudo bem direitinho: prestaram atenção na aula, obedeceram aos pais e respeitaram os mais velhos, fizeram o dever de casa, pagaram os impostos devidos, pararam no sinal vermelho e não pisaram na grama verde.

Quando se trata de saúde, as acometidas pela SBMTS acham que não é justo que, apesar de levarem uma vida relativamente saudável, acabem sofrendo de doenças graves como, por exemplo, câncer.

A SBMTS é um mal crônico cujos sintomas volta e meia se manifestam de forma extrema na forma de crises de choro, mau humor, sentimento de auto-piedade, expressão cara de vítima, desânimo, fúria e revolta.

Cada paciente deve receber um tratamento individualizado que pode incluir a prescrição de piadas bobas contadas por um irmão ou amigo, conversas fiadas com uma irmã, um jantar só com amigas mulheres, um passeio na praia ou num bosque, dançar com os filhos ou namorado ou marido, comer um bolo ou sobremesa bem gostosa, saber sobre quem tem ainda mais motivo para se sentir vítima da má sorte etc.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Inchaço

Hoje passei pela décima sétima sessão de radioterapia e já não vejo a hora de chegar à vigésima quarta e última sessão, na semana que vem. Segundo as enfermeiras que me atendem, o tratamento está correndo muito bem mas não sei se tenho a mesma opinião.

A pele na área que submetida ao tratamento está muito irritada e sinto como se tivesse sido exposta ao sol por horas. Quase não aguento usar sutiã e a melhor parte do dia é quando chego em casa e visto uma camiseta bem folgada, sem nada por baixo. É um alívio. Hoje comecei a usar uma mini-blusa de algodão sob o sutiã para aliviar a pressão do soutiã sobre a pele.

A pele em volta da cicatriz da mastectomia está com uma cor escura, parecendo, e aí as mulheres vão me entender bem, da cor de manchas no rosto de quem passou por uma gravidez.

Mas o que me preocupa mais agora não é a pele e sim meu braço esquerdo. No final de semana depois das cinco primeiras aplicações, meu antebraço começou a inchar. Dias depois o inchaço atingiu o cotovelo e agora está chegando à mão.

As enfermeiras dizem que deve ser um efeito colateral passageiro causado pela radioterapia e que deve desaparecer depois do tratamento, embora haja o risco que o inchaço continue e até piore. Se isso acontecer, é provavel que eu esteja sofrendo de uma doença linfática crônica sem gravidade, a linfedema, que muito frequentemente atinge mulheres que tiveram gânglios linfáticos removidos por causa de um câncer de mama ou que passaram por radioterapia. É uma doença sem gravidade e tratável mas, infelizmente, sem cura.

A possibilidade de estar sofrendo desta doença conseguiu me abalar por uns dias. Senti raiva das pauladas que tenho levado da vida e bateu novamente a “síndrome da boa menina traída pela sorte”.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Amigo oba oba

Ficar gravemente doente é bom para pelo menos uma coisa: identificar seus amigos oba oba. Essa categoria de amigo você sempre encontra nas festas, ele diz por aí que é seu amigo do peito e está sempre a fim da sua companhia se você está de ótimo humor e saudável. Mas se bateu um baixo astral ou se o médico acabou de confirmar que aqueles exames deram mesmo positivo para aquela doença que você temia, esqueça o amigo oba oba. O amigo oba oba vai certamente dar uma ligada ou mandar um e-mail lamentando a má notícia mas depois, tchau tchau. Ele só vai aparecer quando você der uma festa para comemorar que o diagnóstico foi um erro médico e para te ajudar a meter o pau no hospital e no sistema, que são mesmo uma merda etc e tal.

Os amigos oba oba não são maus. É bom tê-los para animar uma festa, contar uma boa piada ou não deixar o assunto morrer numa mesa de bar. Mas não conte com eles para muito mais do que isso. Eles não conseguem lidar com assuntos tristes e desagradáveis como um diagnóstico de câncer e somem quando você mais precisa de ajuda. Quando a solidão que a doença traz for mais dolorosa, não espere encontrar um emaizinho dele no seu Inbox. Ele anda ocupado demais para escrever. Um telefonema é também algo inimaginável. Seu amigo oba oba nunca consegue te encontrar, o que é algo meio inexplicável porque você está encarcerado em casa com um corpo doente que quase não consegue dar um passo.

Seu amigo oba oba não consegue enxergar que, se para ele uma doença alheia é algo triste e desagradável, para quem a vive na pele, nos ossos e nas células, a situação é obviamente muitíssimo pior. Ou talvez, quem sabe, ele enxergue isso demais e não consiga suportar ver a dor do amigo, preferindo desaparecer até o amigo se curar ou ser enterrado. De qualquer maneira, ele não consegue esquecer seu próprio desconforto por três minutos, que é o que seria necessário para escrever um e-mail, nem por dez minutos, o tempo de uma ligação telefônica. Uma visitinha solidária, então, completamente fora de questão.

Nesses nem sempre festivos últimos meses da minha vida, consegui identificar alguns amigos oba oba. Se fosse vinte anos atrás, teria ficado decepcionada e magoada, mas hoje consigo relevar, como diz uma amiga que não se enquadra na categoria oba oba. Espero contar com presença deles nas muitas festas que pretendo fazer.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Inventário

Um dia desses, um amigo me disse ficou surpreso ao me ver tão bem disposta andando de um lado para o outro num churrasco que fizemos aqui em casa para nos despedir do meu irmão, que voltaria ao Brasil no dia seguinte, e comemorar o fim do meu tratamento quimioterápico.

Fiquei contente que não estivesse com um ar tão doentio, mas também fiquei pensando que minha aparência pode ter dado uma impressão equivocada dos efeitos desse tratamento. Detesto dar uma de vítima e também é verdade que há pessoas que sofrem bem menos efeitos colaterais do que eu mas é bom avisar: quimioterapia não é mole.

Mantenho contato com duas outras pacientes de câncer de mama que sofreram mastectomia mais ou menos na mesma época que eu. Elas sofreram tão ou mais do que eu e uma delas teve sérios problemas de pele durante todo o tratamento.

Ontem fez um mês que recebi meu último tratamento quimioterápico e muitos dos efeitos colaterais ainda se fazem sentir. As ondas de calor não sumiram, os músculos das pernas continuam muito cansados e as pontas dos meus dedos polegar e indicador ainda estão com pouca sensibilidade. O gosto ruim na boca também não passou e meu paladar ainda funciona mal. Há várias coisas que como que não têm gosto de nada.

Parece maluquice, mas fiz um pequeno inventário de todos os efeitos colaterais que sofri com a quimioterapia. Alguns efeitos são conseqüência direta da quimioterapia enquanto outros são resultado dos remédios que tomei para amenizar os efeitos da quimioterapia.

Desde a primeira aplicação:
Cansaço (queria que o mundo virasse uma cama)
Nervosismo, irritabilidade
Queda de cabelo (carequice)
Nariz escorrendo (irritante)
Ressecamento do nariz e consequente ferida (chato que só)
Pele extremamente seca (parecia Brasília em agosto com 11% de umidade relativa do ar e sem)
Ardência na pele (como se você esquecido de passar o protetor solar e mesmo assim tivesse passado um dia no sol escaldante de uma praia de Natal)
Pele descascada e escura na palma dos pés (feio)
Dor na juntas, ossos e músculos (horrível)
Prisão de ventre
Boca seca
Falta de paladar
Gosto ruim na boca

Só depois das três primeiras aplicações:
Enjôo (suportável)

Só a partir da quarta aplicação:
Ondas de calor (exasperante)
Olhos escorrendo (constrangedor)
Soluços (esquisito demais)
Inchaço das pernas e pés
Pontas dos dedos dos pés e mãos doloridos e sem sensibilidade
Insônia
Diarréia leve
Unhas arroxeadas e ressequidas

Quem sabe essa lista pode ajudar alguém a entender o que passa uma pessoa sob tratamento quimioterápico. Se não servir para mais nada, vai pelo menos me lembrar o quanto estou me sentindo bem agora em relação a três semanas atrás.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Tatuagem

Há uma pequena lista de coisas que eu não entendo. Uma delas é porque há gente que se tatua ou, pior, paga para ser tatuado. Essa semana, depois do início do meu tratamento radioterápico, esse mistério ficou ainda maior.

Para aplicar os raios X e elétrons de forma mais precisa, as enfermeiras me tatuaram seis pontos minúsculos do peito. Se entendi direito, os pontos servem como coordenadas para posicionar a máquina que emite os raios e assim evitar que eles atinjam artérias vitais do meu peito, ombro e pescoço.

A tatuagem de cada um desses pontinhos provocou uma dor rápida mas, na minha opinião, muito forte. Só de pensar que há quem cubra o corpo todo com essas queimaduras dolorosas me dá arrepios.

As tatuagens foram o que de mais desagradável aconteceu nessa primeira semana de radioterapia, em que recebi cinco aplicações. Agora só faltam 19 das 24 aplicações previstas.

De segunda a quinta, depois do tratamento, fui para o trabalho, que fica a cinco minutos de bicicleta do hospital. Isso fez com que tivesse a impressão de que a vida está lentamente voltando ao normal.

sábado, 9 de agosto de 2008

Enfermeiras

Desde que fui operada estou querendo escrever sobre as enfermeiras dinamaquesas. É difícil fazer isso sem ser piegas, mas acho que vale a pena correr o risco. Sobre o sermão da Eva já escrevi, mas preciso também comentar o gesto da Mette que ontem, na minha chegada à clínica de oncologia, segurou minhas mãos me cumprimentando.

Na hora nem pensei no gesto, que aconteceu de forma bem natural. Logo depois me veio à cabeça que um gesto daqueles não é muito usual para um dinamarquês. Foi também a Mette que, semanas atrás, antes de entrar de férias, me deu um abraço quase se desculpando porque não estaria trabalhando quando eu fosse receber meu último tratamento quimioterápico.

Me lembro também da Regina (que aqui se pronuncia “reguina”), aquela dos olhos azuis enormes, cabelos curtos pintados de preto. Ela me atendeu no período pós-operatório e foi ela quem tirou o curativo que cobria a cicatriz que ficou no lugar do meu seio esquerdo. Em diversos momentos, sua sensibilidade e atenção tornaram aqueles dias tristes depois da operação mais fáceis de suportar.

Acho que as enfermeiras dinamarquesas exercitam todo seu “calor humano” com os pacientes, o que não se pode dizer dos médicos dinamarqueses que tenho encontrado. Eles sempre mantiveram uma ralação profissional mas, na minha opinião, exageradamente distante dos pacientes.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Resultado

Boa notícia. Boa não, excelente. Hoje fomos ao hospital para, entre outras coisas, saber os resultados dos exames que fiz na semana passada. Não acharam nadinha, nem um pontinho de células cancerosas. Viva! Parece que a quimioterapia funcionou e deu cabo daquele carocinho que havia aparecido no meu ombro esquerdo.

Hoje começo a tomar os comprimidos do tratamento anti-hormonal, amanhã de manhã recebo a primeira dose de herceptin e na segunda começa a primeira das 24 sessões de radioterapia. O tratamento vai durar cinco anos e as doses de herceptin vão se repetir a cada três semanas durate um ano.

É, ainda há muita coisa pela frente mas, se tudo der certo, nunca mais precisarei passar por uma quimioterapia novamente. Aleluia!

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Calores

Acho que é errado escrever calor no plural, mas vou me dar essa licença. É que no auge da agonia térmica em que essa quimioterapia me jogou, essa licença de número é perfeita para descrever o que venho sentindo: calores.

Esses calores foram uma das novidades desagradáveis trazidas pela quarta sessão de quimioterapia, quando a medicação mudou para um produto cujo princípio ativo é o docetaxel. Eles vêm o dia todo, mas principalmente no final da tarde e começo da noite. São eles os principais responsáveis pelas noites mal dormidas dos últimos dois meses.

Sempre me atacam pelas batatas das pernas. Aí vão subindo devagar pelas coxas, nádegas e chegam ao auge quando atingem a nuca e alcançam minha cabeça careca. Nossa jisus! Se o demo tem hálito, deve ser tão quente e desagradável quanto esses calores.

Os calores não me deixam ter horas seguidas de sono. Durante a noite, me acordam a cada duas horas. Aí sou obrigada a me levantar, beber água, andar um pouco pela casa, abrir uma janela e colocar minha careca para fora para pegar o ar fresco da noite. Depois volto para cama e espero o sono voltar.

Os calores podem ser um sinal de que a quimioterapia antecipou minha menopausa ou apenas um dos trocentos efeitos colaterais do tratamento. Só o tempo dirá.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Scanning

Hoje fiz um scanning que deverá mostrar se ainda há alguma célula cancerosa em meu corpo. O exame, chamado aqui de PET/CT scanning, é feito com o uso de uma substância radioativa injetada na corrente sanguínea. Na próxima semana saberei o resultado do exame.

Em fevereiro passado, antes de ser operada, fiz esse mesmo tipo de exame pela primeira vez. O exame mostrou que, além do caroço no meu seio e de três gânglios infectados na axila esquerda, havia um quarto gânglio infectado abaixo do meu ombro esquerdo que, por estar muito perto de artérias vitais, não poderia ser operado.

Hoje também deveriam ter acontecido os preparativos para a minha radioterapia, que deverá começar daqui a dez dias. Mas, para provar que a organização dinamarquesa nem sempre é impecável, o hospital fez uma confusão com datas e horários e os tais preparativos tiveram de ser transferidos para amanhã.

É uma pena que terei de passar a manhã no hospital. Amanhã poderá ser o último dia do verão dinamarquês deste ano. Segundo os meteorologistas, depois de uma semana de sol e temperaturas que chegaram a 32 graus, o tempo vai mudar e a partir de sábado teremos chuva e temperaturas máximas de apenas 20 graus durante o dia.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Última

Passei pela minha última sessão de quimioterapia na manhã da sexta-feira passada, quatro dias atrás. Fui sozinha ao hospital. O Henrik ou o Alexandre poderiam ter ido comigo, mas preferi ir sozinha. Senti vontade de fechar aquela etapa sem mais ninguém. Estranhamente não me senti alegre, um pouco aliviada talvez, mas a apreensão com os dias de insônia e mal estar que se seguiriam me deixaram um pouco para baixo.

Antes da sessão estava decidida a exigir dos médicos que me receitassem algum tranqüilizante, sonífero ou o que quer que fosse que me desse algumas noites de sono nas próximas semanas. A enfermeira que me atendeu, uma senhora chamada Eva, acabou me enrolando. Enquanto preparava a sessão de tratamento, que inclui uma injeção de soro antes do medicamento quimioterápico, ela foi me questionando sobre a insônia, me perguntando sobre os motivos da minha falta de sono, indagando aqui e acolá.

Me deu vontade de lhe dar um soco. Calma, ficou só na vontade. Nesses dias em que ando como uma “chemical weapon of mass destruction” (arma química de destruição em massa), o diabinho dentro de mim anda bem assanhado. Se alguém fala alguma coisa que soa muito idiota, tenho vontade de dizer “seu idiota”. Se um copo está fora do lugar, tenho vontade de jogá-lo contra a parede. Mas quase tudo fica só na vontade.

O diabinho se assanhou porque as perguntas da enfermeira eram mesmo muito idiotas. Ele perguntou, por exemplo, se eu sentia sono. “Claro, sua estúpida!”, o diabinho berrou. Mas da minha boca saiu um civilizado “Sinto sim”. Expliquei que me deitava, várias vezes durante o dia e a noite, para tentar dormir e só conseguia ficar com os olhos arregalados olhando para a parede, o teto, o armário embutido, a janela, o marido roncando ao lado, o relógio, o celular que agora vive na mesinha da cabeceira da cama ...

A doce e experiente Eva (adjetivos usados pelo meu anjinho) me perguntou sobre o que eu pensava enquanto tentava dormir. Em tudo, disse eu, coisas importantes e coisiquinhas insignificantes como por exemplo, como eu poderia dar um jeito para aquele armário embutido que estou olhando agora ficar mais organizado. Porque aquilo ali está uma bagunça, tem coisa que pode ir para o porão, não precisa ficar ali juntando poeira. Ou como é que vou fazer com a aquela orquídea que ganhei da minha amiga e que precisa de um vaso novo porque está ficando sem terra a coitada, assim vai acabar morrendo à míngua.

Eva, com a calma das santas, ouviu e fez mais uma pergunta. Gente quanta pergunta! “Você pensa sobre o doença?” Nem preciso dizer que o diabinho se assanhou novamente, mas foi o anjinho que respondeu: “Penso, claro, penso se essa coisa vai voltar um dia”.

Aí a Eva pegou meu prontuário e começou o que ela mesmo chamou de palestra. A frase inicial “Tenho 20 anos de experiência” foi repetida várias vezes ao longo do parlatório e era dita com um olhar firme, os olhos azuis dela dentro dos meus olhos castanhos. Foi quase como ouvir um conto de fadas: seu caroço era um carocinho de nada, só 1,9 cm; a quimioterapia já deve ter dado cabo do gânglio infectado que não pôde ser retirado com a operação; você só tinha três gânglios infectados de um total de 18, o que é muito pouco, já vi mulher com 17 gânglios infectados de um total de 18 que hoje está curtindo os netos; talvez você já esteja curada e nem precise de mais tratamento, mas não temos como saber com certeza e por isso é melhor prevenir e continuar com os outros tipos de terapia; o pior já passou, as outras terapias a que você vai se submeter são moleza quando comparadas com a quimioterapia etc.

No final ela chegou a se desculpar pela falação, mas enfatizou que, do alto da experiência dela de 20 anos, ela sabia que era fundamental que eu acreditasse que tudo ia dar certo.

Depois dessa, fazer o que, né? Até esqueci das pílulas para dormir. Saí de lá acreditando que o sono viria sem necessisade de venenos adicionais. Obrigada, Eva.

Ando meio desleixada

Hoje acordei assim meio desleixada, com vontade de ter direito a ficar bem feia. Aproveitei que meu irmão dormiu até tarde e que o Hennrik e a Gabi já tinham saído para vestir uma camiseta amarela de regata e a bermuda mais feia e velha que tenho, uma daquelas que é o resto de uma calça pré-histórica de moletom. Expus a careca, assumi meus cílios ralos e minha sombrancelhas que agora fazem mesmo jus ao nome: se parecem com sombras do que já foram.

Nem perdi tempo me olhando no espelho. Sei que estou horrorosa. Mas é tão bom ter direito a ser feia. Na verdade, acho que é o que todos esperam de uma pessoa doente de câncer e passando por um tratamento quimioterápico: feiúra. Com a ajuda de maquiagem e uns panos bonitos que se vendem por aqui, acho que consegui não ficar horrorosa, em público. Mas aqui, entre as paredes de casa, nesta manhã nem liguei.

Aliás, essa obrigação de se estar sempre bonitinha, pintadinha, depiladinha, penteadinha e tudo mais inha é um saco. Há mulheres que dizem que é por causa da cultura machista que nos obriga, pobres mulheres, a seguir padrões inatingíveis de beleza. Pode até ser que a cultura machista não ajude, mas somos nós mesmas as grandes culpadas desse circo.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Circo

Amanha recomeça o circo. De manhã vou ao hospital fazer um exame de sangue que vai dizer se poderei receber mais um tratamento quimioterápico, marcado para o dia seguinte. Amanhã também recomeçarei a usar um remédio que alivia os efeitos colaterais da quimioterapia e que, ao mesmo tempo, me causa insônia. Esta noite será provavelmente a última chance que tenho de dormir uma noite bem dormida antes do circo químico que deverá me deixar sem dormir bem por pelo menos dez dias.

Mas acho que tudo será mais fácil de aguentar desta vez porque esta deverá ser minha última quimioterapia. Depois, outros tratamentos virão mas nenhum tão duro como esse.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Insônia II

Amanhã faz duas semanas que recebi o quinto tratamento quimioterápico e que não tenho uma boa noite com sete horas de sono. Depois desta última sessão de quimioterapia, senti menos dores graças à extensão do período de uso de um medicamento usado para atacar os efeitos colaterais da quimioterapia. Mas, como já havia acontecido anteriormente, o tal remédio me causou uma insônia terrivel. No final da primeira semana depois do tratamento, houve dias em que dormi duas horas a cada 24 horas. A noite passada foi uma vitória: devo ter dormido umas seis horas.

Me senti feliz

Ontem de manhã, indo para o trabalho de bicicleta, ouvindo música brasileira no meu aparelhinho de mp3 e olhando para o céu azul cheio de nuvens rechonchudas parecidas com as do céu de Brasília, me senti feliz. Foi um sentimento bom e tão agradável que chegou a me surpreender. Na semana passada, enquanto passeava a beira-mar com a Gabi enquanto meu irmão e meu marido batiam papo esperando por nós na praia ao lado, também senti a mesma coisa.

O curioso não foi ter me sentido feliz, mas ter sentido a felicidade como algo estranho e desconhecido. Depois entendi o porquê do estranhamento. É que, embora tenha vivido vários momentos alegres nos últimos meses, havia tempo que o bem-estar físico e o bem-estar emocional aconteciam ao mesmo tempo.

Nesses dias de quimioterapia, muitas vezes parece que eu não consigo caber em mim mesmo. Dá vontade de sair de dentro do meu corpo e abandonar esse cansaço, eessa ardência da pele, essas dores nas juntas etc etc etc. Quando acontece de fazer algo que gosto, como passear com minha filhinha numa tarde morna ou andar de bicicleta num dia ensolarado, percebo que, naquele momento, sou feliz.

domingo, 29 de junho de 2008

Dores e prazeres juninos

Sinto como se estivesse em contagem regressiva para meu pequeno inferno na Terra. Num outro domingo há três semanas comecei a sentir dores que só diminuíram depois de quatro noites. Elas começaram nos ossos, juntas e músculos das pernas e pés, se espalharam pela bacia e chegaram aos braços e mãos. Aquele domingo, como esse, veio depois de uma sessão de quimioterapia que havia acontecido na sexta-feira.

Os analgésicos que me indicaram tiveram resultado quase contrário ao que era esperado. Causaram efeitos quase imperceptíveis contra as dores que eu já estava sentindo e provocaram fortes dores de barriga. Às dores se juntaram quatro noites insones e outras tantas mal dormidas.

No auge, as dores e a quase exaustão me fizeram duvidar da minha capacidade e, alguns instantes, até pensar em desistir de lutar contra essa doença. Me fizeram também sentir mais simpatia e admiração pelos que sofrem com doenças que causam dores crônicas e não desistem de continuar vivendo. Me causaram ainda mais indignação com a crueldade dos que infligem a outros seres humanos a tortura de impedi-los de dormir por semanas e até meses.

As dores me fizeram pensar muito mas, infelizmente, mais do que isso, foram capazes de me enfraquecer tanto que perdi o ânimo e força física para escrever, para continuar minhas atividades físicas, para trabalhar e até sair para o jardim. A pouca energia que me restou naqueles dias foi reservada para brincar um pouco com minha filha, cujos mal humor e insatisfação indicaram que ela também foi influenciada pelo meu estado.

As dores diminuíram na quinta-feira, depois que passei a usar outro tipo de analgésico, mas a fraqueza e a insônia persistiram e três dias depois começaram outros tipos de desconforto. As pontas dos dedos das mãos ficaram tão doloridas que quase tive de desistir de abotoar as roupas da minha filha. Durante um ou dois dias, até teclar num computador foi doloroso.

Minha aparência também não melhorou. Minha pele, principalmente do rosto, ficou tão seca que tive de usar creme de pele com 67% de gordura três a quatro vezes por dia. Me senti uma daquelas mortas-vivas dos filmes de terror de Hollywood saindo do túmulo depois de alguns seculozinhos de sono. No hospital me disseram que ainda tive sorte. Em outras pacientes a secura causou feridas na pele.

Tive sorte em outros aspectos. Desde o ano passado havia planejado fazer uma festa junininha no quintal aqui de casa para introduzir minha filha e filhos de amigos numa das tradições brasileiras que mais curto. A data marcada caiu num sábado duas semanas depois da quimioterapia e serviu para me animar a sair do meu estado de prostração. Amigos ajudaram com pratos típicos e nem tão típicos, bebidas e decoração, através do Skype uma das minhas irmãs me ensinou a fazer balões de papel, minha família contribuiu com quilômetros de bandeirinhas a la Volpi, prendas até típicas demais para a pescaria e paçoquinhas que foram disputadas a tapa, e meu irmão e meu marido fizeram a fogueira que ficou acesa até as cinco da madrugada.

Resultado, a festa acabou sendo um sucesso, embora bem confusa por causa do maravilhoso vento do verão dinamarquês, e já estou pensando que, no ano que vem, preciso arranjar tempo para fazer um curau. Para compensar, não preciso me preocupar com as bandeirinhas de São João. Há suficientes para cobrir o quarteirão inteiro.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Insônia

Toda noite, entre as 3 e a 4 da manhã, tenho um encontro com mim mesma. Tem acontecido sempre desde a terceira sessão de quimioterapia e desta vez, em vez de ficar deitada na cama olhando para a parede pensando no que eu poderia e deveria e gostaria de fazer na manhã seguinte, decide me levanter e voltar ao blog. Por favor perdoem os erros de português de uma insone.

A insônia de hoje é causada por um remédio que comecei a tomar hoje para atacar contra-atacar os efeitos da quinta e, espero, a penúltima sessão de quimioterapia, que acontecerá daqui a umas cinco horas. O tal do remédio, usado normalmente para pacientes de reumatismo, impediu que eu sentisse dores nas juntas e músculos logo depois da última sessão de quimioterapia. Mas quando seus efeitos passaram, dois dias depois da sessão, as dores invadiram meu corpo. Um dos resultados foi que fiquei praticamente sem dormir quatro noites e dormi terrivelmente mal por mais umas cinco noites.

Desta vez estou mentalmente preparada para várias noites insones ou mal dormidas. A Pollyana me invade novamene e não consigo deixar de pensar que pelo menos terei uma boa chance de colocar o blog dia.

domingo, 8 de junho de 2008

Uma visita

Hoje à tarde uma vizinha que é enfermeira e mora aqui perto há quase dois anos, entrou pela primeira vez na nossa casa. Mas a visita não foi somente de cortesia. Ela veio porque de manhã eu a vi no jardim da casa dela e aproveitei a deixa para pedir-lhe que me aplicasse a injeção de pegfilgrastim.

Ela apareceu no começo da tarde e lhe contei que estava com câncer de mama. Não pareceu surpresa. Deve ter adivinhado ou ouvido de alguém na creche. Depois da aplicação, conversamos um pouco e mais uma vez tive razões para ser grata à vida.

A irmã dela, com apenas 32 anos, sofre de um tipo raro de câncer desde que tinha treze anos. Não lhe resta muito mais tempo de vida e é por isso que nossa vizinha passa tantos finais de semana na casa dois pais dela, onde a irmã doente está morando.

Quando ela me contou isso tive uma vontade louca de tocar a mão dela e falar o quanto aquilo me entristecia. Talvez, se ela fosse brasileira, ou se eu estivesse no Brasil, ou se eu já não tivesse morado tanto tempo na Dinamarca, eu teria feito isso. Provavelmente também teria dito o que tive vontade de dizer: “Puta que pariu! Aí também é foda”. Mas não fiz nem disse nada disso.

Só olhei bem dentro dos olhos azuis muito claros dela e percebi lá no fundo uma tristeza imensa misturada com uma necessidade quase tão grande de se manter forte para sustentar a si mesma, a irmã e a família na separação que inevitavelmente vai acontecer.

Enquanto olhava bem dentro dos olhos dela, me lembrei do meu pai, da dor e da saudade que a partida dele me deixou.

sábado, 7 de junho de 2008

Quarta sessão

Já faz um tempo que não apareço no blog. É que o tempo aqui anda tão bom que é impossível resistir e não inventar qualquer coisa para fazer ao ar livre. Junte-se a isso visita de parentes dinamarqueses e uma virose que atacou a Gabriela, que não me deixaram tempo nem para respirar.

Mas agora que realmente passei pela metade do meu tratamento quimioterápico, tenho de escrever.

Ontem de manhã recebi minha quarta dose de drogas quimioterápicas. Faltam agora penas duas sessões e nessas três últimas vezes estou recebendo um tratamento diferente do que recebi nas três primeiras vezes. Uma coisa boa desse outro tipo de medicação é que os enjôos vão praticamente acabar mas, para compensar, tenho de me preparar para vários outros efeitos colaterais. O cansaço vai continuar e provavelmente vão aparecer dores de de cabeça, musculares, nas juntas dos ossos, azia e outras cositas mais que prefiro nem listar para não ficar muito chata.

Hoje à tarde recebi uma injeção daquele medicamento, cujo princípio ativo se chama pegfilgrastim em inglês, para estimular minha produção de glóbulos brancos e que me causou tanto mal estar três semanas atrás. Assim como acontece com o tipo de quimioterapia que recebi ontem, os piores efeitos colaterais da injeção que recebi hoje só vão se fazer sentir daqui a dois ou três dias.

Por enquanto estou me sentindo bem, embora tenha aparecido uma leve dormência na ponta da língua, minha boca esteja com um gosto muito estranho e de vez em quando sinto coceira nos braços e pernas. Tudo previsto na longa descrição de efeitos colaterais que recebi do hospital.

Me disseram que os efeitos colaterais da tal injeção não são tão fortes numa segunda dose e estou torcendo para que isso seja verdade. O problema é que os efeitos colaterais da quimioterapia são muito semelhantes aos causados pela injeção, e uma pode reforçar os efeitos da outra, o que pode me deixar meio para baixo amanhã ou depois. É esperar para ver.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Chuvarada

Hoje choveu forte durante todo o dia em Copenhague. Foi a primeira chuva em várias semanas de dias ensolarados, pouco comuns na primavera dinamarquesa.

Os dias ensolarados são os responsáveis pela menor freqüência com que tenho escrevido. É que quando o sol sai, ninguém fica dentro. A dinamaquesada inteira vai para os jardins, parques, praias, cafés nas calçadas e onde mais se possa conseguir um lugarzinho ao sol. Eu, claro, não deixo por menos. Passo todas as horas que posso no jardim ou estou sempre arranjando um programinha ao ar livre.

O quase desespero pela luz trazida pela primavera não é para menos. Pelos padrões brasileiros, há, pelo menos, seis meses de inverno na Dinamarca. De outubro a abril, as temperaturas são semelhantes ou bem mais baixas dos que as do inverno do sul-sudeste brasileiro.

A primavera começa oficialmente no final de março, mas é só em maio que o sol começa realmente a dar o ar da graça e as temperaturas são mais amenas. Exércitos de dinamarqueses desesperados pelo sol saem às ruas como formigas saem do formigueiro depois de uma chuvarada. O pouco cuidado com que os dinamarqueses brancos de natureza e pálidos de inverno se expõem ao sol mostra porque o câncer de pele é o tipo de câncer mais comum na Dinamarca. Meu hábito de usar protetor solar e chapéu nas horas de sol mais intenso chega a ser visto com curiosidade por alguns dinamarqueses, que não entendem porque uma pessoa morena como eu precise se proteger dos raios ultra-violeta.

terça-feira, 20 de maio de 2008

O bichinho pegou

Me senti relativamente bem depois da terceira sessão de quimioterapia e antes de ontem, domingo, cheguei a participar de um mutirão de pais na creche da Gabriela. Demos uma geral na creche: alguns pintaram, outros capinaram, outros costuraram. Depois almoçamos todos juntos um feijão à mexicana preparado por um dois pais.

Mas ontem o bichinho pegou. Ao cansaço que tem me acompanhado em maior ou menor grau desde o começo da quimioterapia, se juntou dor de cabeça, calafrios e dores por todo o corpo, principalmente na nuca, ombros e costas. Parecia que estava no começo de uma super gripe, daquelas que derrubam elefante e em que a gente pede para o mundo se acabar numa cama.

O pior não era o mal estar físico, mas uma tristeza que me atacou profunda e subitamente. Depois de uma boa choradeira, me senti melhor, mas o mal estar continuou, embora hoje as dores musculares tenham ficado mais fracas.

O motivo de tanto mal estar foi um medicamento que tomei um dia depois da quimioterapia com o objetivo de estimular meu organismo a produzir mais neutrófilos e assim me proteger de infecções. Na lista de efeitos colaterais provocados pelo tal medicamento estão dores musculares e dor de cabeça.

Se tudo correr como planejado, e vai, passarei por seis sessões de quimioterapia. Estava previsto que eu receberia esse medicamento para produção dos neutrófilos somente depois de cada uma das últimas três sessões de quimioterapia. Como meus neutrófilos resolveram sumir já depois da segunda sessão, os médicos decidiram que eu já deveria começar a receber o tal medicamento uma sessão antes do previsto.

Agora já não dá para dizer que não sei o que me aguarda nas últimas três sessões de quimioterapia.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Glóbulos desbotados


A semana que passou foi povoada por duas pequenas frustrações. O tratamento que eu receberia na terça-feira passada teve de ser adiado para a sexta-feira porque o nível de um tipo de glóbulos brancos do meu sangue estava muito baixo. Um exame de sangue confirmou que o índice que mede a concentração dessas células, que aqui chamam “neutrocytes”, era de apenas 1,1, enquanto o aceitável seria 1,5. Se não me engano, essas células se chamam neutrófilos em português.

Um adiamento de apenas quatro dias pode parecer insignificante, mas quando toda sua vida se organiza em torno de um tratamento que vai determinar como você vai se sentir nas próximas semanas, a coisa muda de figura. Uma amiga que tinha tirado folga para ficar comigo durante e nas horas depois da quimioterapia, perdeu o dia de trabalho inutilmente. Uma outra amiga veio de Madrid para me ficar comigo e a Gabi enquanto o Henrik viajava a trabalho. Claro que foi ótimo revê-la, mas ela talvez tivesse escolhido um outro dia para me visitar se soubesse que eu não receberia o tratamento na data prevista.

Além disso, todo atraso no meu tratamento significa que voltar a ter uma vida mais próxima do normal fica mais distante.

Na sexta, um terceiro exame de sangue em uma semana mostrou que os glóbulos brancos do meu sangue finalmente haviam chegado ao nível adequado. O índice que mede a concentração de neutrófilos do meu sangue já tinham subido para 1,7. No mesmo dia passei pela terceira dose de quimioterapia, o que foi um alívio.

O outro pequeno desapontamento da semana foi meu joelho direito. Na terça, depois dos meu recorde de 26 minutos, meu joelho passou a doer. Achei que no dia seguinte estaria em forma novamente mas, quase uma semana depois, continuo sentindo que ainda não dá para correr. Sou obrigada a esperar meu joelho se recuperar para quebrar novos recordes.

terça-feira, 13 de maio de 2008

26 minutos

Hoje de manhã voltei a correr e bati meu próprio recorde: 26 minutos. Mas meu joelho doendo está me dizendo que talvez eu tenha exagerado um pouquinho. Bem, vou ser mesmo quase obrigada a fazer uma pausa nos próximos dois dias por causa do cansaço e mal estar causados pela quimioterapia.

Daqui a pouco uma amiga vem me buscar para irmos ao hospital onde deverei passar por mais uma sessão de quimioterapia no começo da tarde. Nada a fazer a não ser respirar fundo.

A cruzada de Pia

Um tempo atrás, um dos maiores jornais da Dinamarca anunciou o lançamento de um livro que conta a história das 10 pessoas mais influentes do país. Na lista, apenas uma mulher. O fato da lista só ter uma mulher seria suficiente para me incomodar já que se poderia esperar um pouco mais de um país conhecido por ser um dos mais avançados no reconhecimeto dos direitos das mulheres.

Mas a tal lista me grilou ainda mais porque a única mulher incluída, Pia Kjærsgaard, é uma das políticas mais conservadoras e, talvez como consequência do seu conservadorismo, mais populares da Dinamarca. Famosa por defender políticas anti-imigração e anti-imigrantes, ela lidera o Partido do Povo Dinamarquês (Dansk Folkeparti).

Criado em junho de 1996, o DF (sigla em dinamarquês) tem uma trajetória espetacular. Já nas eleições de 1996 conseguiu 7,4% dos votos e no ano passado recebeu 13,8 % dos votos – suficientes para que o partido aumentasse para 25 o número de vagas no parlamento e mantivesse seu posto de terceiro maior partido do país.

De fato, não é de estranhar que Pia fizesse parte da tal lista. Ela é realmente uma das pessoas mais influentes do país. Para não desagradar seus próprios eleitores, o partido no poder, o Venstre (embora o nome signifique esquerda, o partido é de centro-direita), não ofereceu cargos ao DF. Mas isso não diminuiu o poder do partido de Pia, do qual o governo depende para conseguir maioria no parlamento.

Pia Kjærsgaard não gosta de ser chamada de racista. Aliás, já andou processando pessoas que a classificaram como tal. O problema é que abundam exemplos de que ela e seu partido são o que não gostam de ser chamados. Um dos mais notórios foi a impressão de um cartaz da ala jovem do DF contra o crescimento da população imigrante. O cartaz comparava a Dinamarca de hoje, mostrando jovens brancos sorrindo com ar saudável e feliz, com a Dinamarca daqui a dez anos, mostrando moças com o rosto coberto, à maneira islâmica, e rapazes, aparentemente de origem árabe, em atitude desafiadora, como se estivessem prontos para uma ação terrorista.

Ela combate, como já declarou, uma Dinamarca multiétnica e multicultural porque – muito simples – a Dinamarca é para os dinamarqueses. Faz uso de generalizações grosseiras ao dizer que os refugiados que chegam ao país têm desprezo por tudo que é dinamarquês, ocidental e cristão e estão mergulhados em cultura medieval.

Para desempenhar o papel de protetora da Dinamarca branca e cristã, Pia se veste literalmente a caráter. Não com armadura e lança, como os guerreiros medievais, mas freqüentemente com terninhos cor-de-rosa que são de matar.

Infelizmente para ela e para os pouco mais de cinco milhões de pessoas que conseguem entender dinamarquês, a voz dela é uma lástima: esganiçada e fanhosa – um misto de Roberto Carlos com Dercy Gonçalves. Mas ela não se intimida: adota um tom doce e suave e parte para o ataque, sempre dando a impressão de que não está atacando ninguém, mas apenas defendendo sua virtuosa e imaculada Dinamarca.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Socos

Essa história de enfrentar a realidade nem sempre é o meu forte. Quando soube que aquele caroço no meu seio esquerdo era maligno, tentei de todas as maneiras dizer a mim mesma que não devia ser tão mal assim, que era só um carocinho de nada que uma cirugia simples resolveria.

Receber uma notícias dessas numa outra língua ajuda a fugir dos socos de realidade. Antes de eu saber o que tinha, ao perguntar à médica que fazia uma ultrassonografia dos meios seios o que ela tinha encontrado, a resposta, em dinamarquês, foi clara: “Esse caroço é maligno”. Fiquei especulando se a palavra "maligno" em dinamarquês tem o significado horrível que tem em português. Mas, embora não tivesse usado a palavra câncer, ela não deixou margem para dúvidas: eu teria de ser operada e a dimensão do problema seria conhecida depois do resultado de uma biópsia e outros exames.

Naquele dia eu havia ido sozinho ao hospital. Saí da sala onde foi feito o exame e entrei no primeiro banheiro que achei. Chorei sozinha, e muito.

Até então minha vida havia sido povoada por várias dúvidas e algumas poucas certezas. Naquele banheiro, quase tudo cedeu lugar a uma interrogação vital “vou sobreviver a essa doença?”. Essa incerteza imensa e sufocante veio junto com outra ainda mais terrível: “vou sobreviver para ver minha filha crescer?”.

Todos com quem converso sobre minha doença sempre tentam me encher de otimismo e confiança. “Hoje em dia os médicos têm controle sobre isso, ninguém morre mais de câncer de mama, a medicina avançou muito nessa área...” Ouço e concordo, mas aquele diabinho que vive espetando meu anjinho abana a cabeça e diz: “Blá, blá, blá. Num ano, mais de 1300 mulheres morrem de câncer de mama só na Dinamarca, um paisinho com cinco milhões de habitantes”.

Fujo das estatísticas e evito me fazer aquelas perguntas. Elas me acompanham, mas prefiro não encará-las. Elas me entristecem, como agora, e me sugam energia, ânimo e alegria. Tento substituí-las com uma certeza: não vai ser essa porcaria de doença que vai me matar. Ainda tenho muito coisa para fazer e a mais importante delas é ver minha filha crescer.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

21 minutos

Acho que hoje posso dizer que superei a segunda etapa do meu tratamento quimioterápico. Os piores efeitos colaterais da segunda rodada já passaram e me sinto quase como se não estivesse sob tratamento. Agora é curtir esta boa semana, antes de tudo recomeçar na semana que vem, quando terei uma nova sessão de quimioterapia.

Hoje corri por 21 minutos em volta do lago aqui perto de casa. Foi meu tempo recorde desde que comecei a correr depois da operação e me senti uma verdadeira campeã. Os dias ensolarados têm ajudado. Fica fácil se animar para sair de casa nesses dias de sol de brigadeiro e temperatura perto dos 20 oC. Só espero que se esse pique todo continue quando eu voltar a trabalhar e o inverno chegar. É possível que sim. Afinal, agora tenho uma motivação adicional para continuar me movimentando: há estudos que indicam que mesmo atividade física moderada pode aumentar a expectativa de vida de quem tem ou teve câncer de mama.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Primavera 2008

A ameixeira do vizinhoA primavera chegou para valer aqui na Dinamarca. Os jardins são uma profusão de cores que quase conseguem apagar da memória os dias cinzentos e desfocados do inverno. A temperatura chegou a incríveis 20 graus durante o dia na última semana, o que nos fez ir atrás de sapatos e sandálias menos quentes para a Gabi.

Mas a alegria com a chegada da primavera sempre me prega peças. Olho aquele solão lá fora e não tenho dúvida: pego o casaco mais leve do armário, monto animadinha a bicicleta e cinco minutos depois, tiritando, estou me xingando porque não vesti uma roupa mais quente. É que as manhãs e finais de tarde ainda estão bem frios. No inverno é mais difícil se enganar. Faz frio o tempo todo e não há dúvida sobre o que devo vestir: blusa, cardigan, meias-calça, calças compridas, botas, luvas, cachecol, chapéu ou touca. Em resumo: pareço uma cebola, cheia de camadas, como observou uma conhecida.

As temperaturas mais amenas também são uma alívio para minha careca. Nossa, como sinto frio na careca, especialmente na nuca. Mesmo dentro de casa e até na hora de dormir estou sempre usando uma das tocas que comprei para os meus meses de carequice.

Uma pedagoga da creche da Gabriela perdeu todo o cabelo do corpo cinco anos atrás por causa de uma doença incurável. Um dia desses conversei um pouco com ela sobre o que é viver sem cabelo. Ela me contou do frio que sente com uma simples brisa que passa por seu braço liso. Falou também o quanto foi difícil encarar o olhar das pessoas logo depois de ter perdido o cabelo e como sempre se recusou a usar peruca. Admirei a coragem dela e me senti grata por saber que meu cabelo logo vai ter permissão para voltar a crescer.

domingo, 27 de abril de 2008

Fugindo da raia

Ontem o Henrik e eu fomos à festa de aniversário de trinta anos da prima dele. Na Dinamarca, quando falam em festa, geralmente querem dizer um jantar que dura horas, onde você fica sentado ao lado ou em frente a pessoas que você nunca viu e pelas quais você não se interessa ou que não se interessam por você. Depois de uma refeição interrompida por discursos, canções e brincadeiras nem sempre tão divertidas, às vezes rola uma dançazinha animada por um organista ou um conjuntinho musical que deixam muito a desejar.

Felizmente, a festa de ontem não seria do tipo tradicional. Foi anunciada como uma festa onde rolaria muita música e nada de jantar, apenas bebidas e tira-gostos. Oba, diria uma brasileira saudosa de uma festa daquelas. Mas aí vale outro esclarecimento. Na Dinamarca, quando anunciam uma festa como essa, entenda-se bebedeira coletiva. Claro que há exceções, mas de modo geral o que acontece é que o povo se reúne para beber tresloucadamente e, dançar que é bom, fica para segundo plano.

Mas decidimos ir assim mesmo e tudo ia bem até estacionarmos o carro ao lado da casa da aniversariante. A idéia de encarar uma casa cheia de gente estranha e festiva de repente me apavorou. Me acovardei diante da perspectiva das pessoas me olharem tentando adivinhar o que eu, com aquele pano na cabeça, seria: extravagante, religiosa ou doente? Tentei controlar as lágrimas, inclusive para evitar borrar o rímel caríssimo que havia comprado no dia anterior, mas foi inútil. Os gases inchando minha barriga, o cansaço e um incômodo na área da cirurgia não ajudavam em nada a levanter meu ânimo.

Depois de mais uns minutos no carro, outros convidados da festa passando por nós, o Henrik deu a partida e fomos a um café, onde bebemos um chá e me acalmei. Por ele, poderíamos voltar para casa. Insisti que deveríamos voltar e encarar a turba. Afinal, tínhamos comprado presente, argumentei com meu raciocínio de quem não admite desperdícios.

Fomos. As pessoas podem até ter ficado na dúvida sobre se eu era extravagante, religiosa ou doente, mas foram suficientemente discretas para me tratar como se não estivessem notando o pano na cabeça.

A festa foi aquilo mesmo que eu previa, uma bebedeira coletiva. Mas, à margem dela, lá pelas tantas me vi discutindo com um casal de pedagogos e o Henrik evolução natural e o aparente descompasso entre o desenvolvimento físico e mental dos seres humanos. E olha que eu não tinha bebido nenhuma gota de álcool.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Peruca

Três dias depois do meu primeiro tratamento quimioterápico, fui a uma perucaria e falei à vendodora que precisava de uma peruca. A senhora me olhou e disse: “Ah, meu Deus, onde é que vou arranjar uma peruca para substituir esse cabelo todo?” E continuou: “Você tem o tipo de cabelo que sempre sonhei ter: cheio, encaracolado”. Eu ficaria envaidecida se já não tivesse ouvido isso inúmeras vezes aqui na Dinamarca, onde os cabelos escuros e cacheados fazem sucesso, ao contrário do Brasil superpovoado de falsos louros alisados.

Agradeci os elogios da vendedora, aliás muito gentil e simpática, e lhe pedi que tentasse alguma peruca curta e escura. Ela veio com algumas e minha mãe e meu marido, que foram comigo à loja, concordaram que uma delas tinha ficado até legal. Embora o resultado tenha ficado melhor do que eu esperava, ainda me achei ridícula com aquela coisa.

Mas como a coisa seria paga pelo hospital onde estou sendo tratada, decidi levá-la. Afinal não sabia como me sentiria depois de perder o cabelo e, quem sabe, até me animaria a usar a coisa.

Hoje, seis dias depois de raspar a cabeça, ainda não me animei a usar aquela coisa. A Gabriela também não gostou. Olhou e disse: “Feio, mãe, feio”. Apesar da opinião desfavorável, de manhã, antes de ir para creche, quando lhe sugeri que usasse a peruca, ela não se avexou. Enfiou-a na cabeça e se divertiu a valer, o que, claro, não perdi a chance de registrar.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Tô um bagaço mas tô bem


Hoje às 11 da manhã recebi a segunda dose to tratamento quimioterápico. Estou um bagaço mas estou bem. Dá para entender? Quando, depois de uma sessão de quimioterapia, você só se sente um bagaço de tão cansada é porque a coisa vai bem. A barriga parece que vai estourar com gases, tenho um pouco de enjôo e bebo água mineral com gás o tempo todo, mas perto daquilo que ouvi falar que outras pessoas sofrem, isso não é nada.

A outra boa notícia do dia é que conversamos com uma médica do hospital (Rigshospitalet) onde estou sendo tratada e ela disse que na maior parte dos casos, a quimioterapia é suficiente para eliminar células cancerosas que ainda tenha ficado em gânglios linfáticos.

Depois da operação, achamos que todos os gânglios linfáticos cancerosos tivessem sido retirados, mas um exame ainda em fase experimental feito quatro dias antes da cirurgia mostrou que havia um quarto gânglio contaminado abaixo da clavícula. A médica que cuida do meu caso explicou que aquele gânglio não poderia ter sido retirado com uma operação porque fica muito perto de uma artéria vital. Mas ficaram muitas dúvidas da conversa que tive por telefone com ela e hoje falamos uma a supervisora dela, que pareceu saber do que estava falando.

A terceira notícia boa do dia é que hoje voltei a correr em volta do lago Utterslev, aqui perto de casa, antes de ir ao hospital. Corri só 20 minutos, mas me senti o máximo. Aliás, o dia estava lindo.

domingo, 20 de abril de 2008

Careca

Estou careca. Tentei me agarrar até o último fio de cabelo mas não deu. Meu cabelo passou a cair demais desde ontem, o que estava me incomodando demais. Era cabelo para todo o lugar. Era só passar a mão que saía um monte. O cabelo caído nas minhas costas coçava horrores e começou a ficar constrangedor tanto cabelo caído nos meus ombros.

Hoje à noitinha o Henrik e a Gabriela me ajudaram a acabar com o que restava da minha cabeleira. Sentei com a cabeça inclinada sobre uma bacia grande de plástico enquanto o Henrik, a Gabi e eu íamos puxando o cabelo que saía aos montes. Quando o Henrik passou o barbeador para remover os fios que restavam, a Gabi se preocupou comigo e choramingou “Nej, é dodói.” Eu ri alto, falei que não doía e ela se acalmou. Depois perdeu o interesse pela brincadeira de deixar a mamãe careca e pediu para ver um DVD do Cocoricó.

sábado, 19 de abril de 2008

Cabelo

Não sei se ”o mais difícil até agora” escrito na última remessa é mesmo pra valer. Essa história de perder cabelo não está sendo nem um pouco engraçada. Começou na segunda, dia 14. O couro cabeludo coçava bastante, puxei o cabelo do alto da cabeça e saíram mais fios do que o normal. Fui ao banheiro logo de manhã cedo e notei que havia uns fios na calcinha. Até achei engraçado: parecia depilação sem cera e sem dor. Era só puxar que a marca do biquini ia se formando. Pena que de lá para cá quase não caíram mais cabelos do púbis.

No dia seguinte comecei a parar de achar graça quando os fios da cabeça, principalmente da parte de trás, passaram a cair em maior quantidade.

Na quinta fui à fisioterapia, que faço com outras mulheres que também sofreram masectomia, e fiquei vendo “eu amanhã” numa delas. Ela começou o tratamento quimioterápico uma semana antes de mim e decidiu raspar a cabeça depois de aparecerem clarões no couro cabeludo.

Ontem e hoje, sábado, a queda aumentou consideravelmente. Antes eu puxava e vinham 10 a 20 fios. Agora vêm 30, 40. Tem cabelo meu para todo lugar. Claro que o mais sensato seria raspar tudo, mas ainda não criei coragem. Me agarro até o ultimo fio de cabelo. Ou melhor, até o primeiro clarão. O que deve acontecer amanhã ou depois.

Até essa semana não imaginava o quanto o meu cabelo era importante para mim. Ontem fiquei bastante triste e chorei um pouco por causa da futura carequice e de tudo que ela representa. Hoje amanheci mais animadinha. Acho que me fez bem chorar um pouco. Fazia dias que eu bancava a durona.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Bandagem

O pior, até agora, foi quando tiraram a bandagem que cobria o ferimento deixado pela operação para retirada do meu seio esquerdo. Até então o corte de quase vinte centímetros estava coberto por gaze e embora fosse evidente que ali näo havia mais um seio, era como se o curativo me protegesse de encarar meu corpo mutilado.

O curativo foi retirado dois dias depois da operação e, graças aos deuses, ninguém ocupava a cama ao lado da minha e o Henrik tinha vindo me visitar depois de ter levado a Gabi para a creche. Foi simplesmente horrível. Olhar para o que não havia mais, um peito metade vazio, riscado por um corte enorme, mais parecendo o de uma menina de oito anos. Do outro lado o seio direito, pateticamente solitário.

Esteticamente talvez tivesse ficado melhor se os dois seios fossem retirados. Mas isso teria significado que a doença tinha se espalhado mais do que os 1,9 cm de caroço, mais algumas células em estado pré-cancerígeno por perto e mais três nódulos linfáticos contaminados.

Me senti desconsolada, muito triste e chorei forte e alto como ainda não tinha chorado desde o início desse pesadelo. Usar a palavra pesadelo é cliché, mas é difícil encontrar uma outra melhor. Nos primeiros dias acordava de manhã meio esquecida de tudo que havia acontecido e do que ainda estava por acontecer: eu sofria de cancer de mama, tinham me retirado um seio, eu era uma aleijada e ainda teria que passar por meses de um tratamento cujos efeitos colaterais mais parecem uma segunda doença sem ter certeza de que no final de tudo isso eu sobreviria a essa doença maldita.

Razões para otimismo há, sem dúvida, mas naquele momento nada era capaz de amenizar a dor, o desespero, o desamparo. Me senti tão feia. Horrorosa. Dona de um corpo que pode assustar crianças e chocar adultos.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Imunidade

Até dezembro do ano passado, era como se minha família estivesse protegida por uma aura que a protegia das doenças e mazelas da vida. Embora eu soubesse que meu pai estivesse com sérios problemas pulmonares e já tivesse comentado com Henrik, meu marido, que mais cedo ou mais tarde ele poderia nos dar uma supresa desagradável, no fundo no fundo eu ainda achava que nada de verdadeiramente ruim nos atingiria.

Aí, na manhã de uma sexta-feira, 21 de dezembro, receber a notícia de que meu pai havia sido internado depois de duas paradas respiratórias e uma parade cardíaca não foi só um choque. Foi também a implosão de uma crença que me acompanhava desde criança: a de que minha família era inatingível, infalível.

Semanas depois da morte do meu pai, quando soube que minha sobrinha passava por uma outra crise da síndrome nefrótica que a acompanha há anos, me apavorei. A crise foi controlada, mas o pânico não sumiu. Acho que foi mesmo um pressentimento de que algo muito errado estava por acontecer.